“No dia 25 de Abril pensei que o meu pai podia ter ficado morto ali no meio”

Miguel Caetano e José António Saraiva debatem as causas que levaram à queda do regime. O filho do último presidente do Conselho recorda o dia, para ele de má memória, 25 de Abril de 1974. Ao ver os tanques e a população a ocupar o Largo do Carmo, teve receio de que o pai fosse…

“No dia 25 de Abril pensei que o meu pai podia ter ficado morto ali no meio”

Por José António Saraiva e José Cabrita Saraiva

Regressamos ao Linhó, à casa onde outrora o último primeiro-ministro do Estado Novo passava os fins-de-semana e os três meses de verão. Neste refúgio, cujo jardim foi por si desenhado e onde havia apenas um telefone de Estado – nada de telefones particulares -, Marcello Caetano gostava de falar com o caseiro e de se dedicar à horta, «que era ele que geria», diz-nos o seu filho. Uma vez por semana ia a Lisboa tratar de assuntos oficiais.

Nesta segunda sessão que juntou José António Saraiva, autor de Caetano – O drama do homem obrigado a ter duas faces (ed. Gradiva), e Miguel Caetano conversamos sobre «o desmoronamento da esperança de renovação», os desastres da Guerra Colonial e o ‘fatídico’ dia 25 de Abril de 1974 visto pelos olhos da família do presidente do Conselho. Miguel Caetano revela que temeu que o pai não saísse com vida do quartel do Carmo.

JAS: Na vida política de Marcello Caetano há três fases claríssimas. A primeira começa no momento em que conhece Salazar, que o convida para auditor do Ministério das Finanças, em 1928, e vai até à sua saída de ministro da Presidência, em 1958. É uma fase com altos e baixos, mas numa tendência sempre ascensional. É aí que chega ao lugar de delfim. Considera-se (e consideram-no) o sucessor natural de Salazar. Depois, começa uma fase completamente diferente, que vai até 1968, em que diz que a sua vida política acabou. Dez anos, até ao momento em que Salazar cai na banheira. É uma segunda fase em que está fora da vida política, mas mantém aquele célebre grupo de amigos que se reúnem no Estoril, no restaurante A Choupana. Há quem diga que ele conspirou, eu não acho que isso seja claro. Está, antes, numa espécie de reserva da República, para o que der e vier. E depois a última fase, em que é presidente do Conselho.

MC: Testemunhei que o meu pai assumiu a Presidência do Conselho com um projeto para o país bem definido: progressiva abertura política, forte apoio do desenvolvimento económico e social, legalização da emigração, liberalização da atividade dos sindicatos, reestruturação dos sistemas de assistência e previdência social, reforma do ensino… É claro que não podia esquecer o problema da guerra colonial, e procurou novos caminhos, quer na área dos apoios militares, quer na abertura constitucional às autonomias progressivas.

Na altura em que o seu pai é presidente do Conselho, já tinha mais de trinta anos. Conversavam sobre política, trocavam ideias?

MC: Ele sabia que eu participava no que podemos chamar de ‘grupos desenvolvimentistas’ e que também me relacionava com alguns núcleos dos chamados católicos progressistas. O meu pai procurava informar-se sobre as novas gerações e fomos conversando – em 1970 já com mais dificuldades, por causa da fundação da SEDES, mas sempre com a maior das franquezas. 

JAS: Diria que no período em que o seu pai é presidente do Conselho há duas subfases. Uma primeira em que acha que vai conseguir os dois grandes objetivos que se propôs: resolver o problema da guerra colonial e promover a liberalização do país. Essa é a fase do lançamento dos liberais, a chamada dos tecnocratas para o Governo, a autorização do regresso a Portugal de Mário Soares e do bispo do Porto. Há uma série de iniciativas que mostram essa vontade, que acho ser genuína, de caminhar no sentido da modernização do Estado Novo. E até lhe muda o nome para Estado Social. Mas depois começam a aparecer os problemas. A morte de José Pedro Pinto Leite [um dos deputados da ala liberal mais próximos de Marcello, que perdeu a vida num acidente de helicóptero em Bissau] é um deles, as questões com os estudantes iniciadas em Coimbra também não ajudam, as questões com os militares… Uma após outra, o seu pai vai vendo caírem as cartas que tinha jogado para tentar desbloquear o regime.

MC: Infelizmente, a doença e a morte de José Guilherme de Melo e Castro e a morte abrupta de José Pedro Pinto Leite, ambos em 1970, abriram um caminho de constantes mal-entendidos entre o meu pai e os chamados deputados da Ala Liberal. Isso influenciou decisivamente o que se passou depois com a reeleição do almirante Thomaz.

JAS: Que é o grande desmoronamento desta esperança de renovação. O seu pai nunca falou disso?

MC: Sim. Digamos que depois da reeleição e de algumas alterações dos quadros dos dirigentes políticos, houve um afastamento entre nós. Muitos elementos da Ação Nacional Popular [ANP, que resultou da reorganização da União Nacional, o partido único do salazarismo] pressionaram-no para ele procurar outra solução, inclusive propõem o Spínola, que ele achava um grande militar, mas um péssimo político. E ele recusa liminarmente, com um argumento formal: ‘Eu tenho a obrigação de consultar o almirante Thomaz, visto que ele é que me convidou para o lugar em que eu estou. Portanto, primeiro que tudo, vou consultá-lo’. Formaliza o convite. O Thomaz já tinha idade para se retirar, mas responde por carta que não pode recusar o serviço da pátria num momento daqueles e aceita. O meu pai vai à reunião da ANP e lê a carta. Aquilo era votado. Podiam ter-se levantado, dito que não, mas ninguém fez coisa nenhuma. Ficou tudo silencioso. Os que tinham andado a ‘apertar’ com ele para substituir o Thomaz ficaram todos caladinhos. Acho que houve umas abstenções. Aí o meu pai tem dois argumentos formais: primeiro, tinha de convidar o Thomaz; segundo, a ANP não tinha contestado a reeleição.

JAS: Não sei se tem em mente a carta do Thomaz. É muito hábil, porque não dá quase hipótese de saída aos que querem a sua substituição. Ele diz: ‘Atendendo à minha idade, eu não devia aceitar o convite para ser reeleito, mas atendendo ao estado do país, não posso recusá-lo’. O seu pai ainda diz que não pode exigir-lhe esse sacrifício, mas ele fica na sua: é um sacrifício que tem de fazer pela pátria. Encosta os outros à parede…

José António Saraiva escreve no seu livro que Thomaz e os seguidores de Salazar são como «um enorme pedregulho que obstrui a estrada e que ninguém consegue afastar do caminho». Não temos dificuldade em imaginar, numa situação idêntica, Salazar a resolver facilmente a situação afastando o Presidente da República. O seu pai não teria lamentado ser tão escrupuloso?

MC: Hoje estou convencido de que o meu pai não queria substituir o Thomaz. Estava zangadíssimo com os liberais e, quando eu comento a reeleição, ele diz-me: ‘Chegou a hora dos fiéis. Vamos acabar com isso’. Como calculam, foi uma conversa tensa. E eu respondi: ‘Está bem, pai. É uma escolha’. Foi quando deixámos de discutir política.

Deixaram completamente de falar de política em casa?

MC: É uma altura complexa, em que houve várias mudanças lá em casa. A minha mãe morreu no princípio de 1971 e o meu pai, talvez até para que a minha irmã pudesse agora concentrar-se na sua vida profissional, convida duas irmãs mais velhas e solteiras para virem viver com ele. Uma tinha sido professora primária (em Torres Vedras, Colares, Belas) mas estava reformada, e a outra tinha o curso mas não exerceu.

JAS: Irmãs do seu pai…

MC: Sim, mais velhas. E o ambiente passa a ser muito diferente, porque as minhas tias eram muito reacionárias. Na altura, a minha irmã Ana Maria começou a estudar psicanálise. Lembro-me de uma vez estarmos a falar sobre isso e uma das minhas tias dizer: ‘Isso é uma coisa contra os meus princípios’. E o meu pai diz-lhe: ‘Não percebes nada disso’. Portanto, no resto da conversa [extra política], procurava marcar uma modernidade onde elas não estavam. Mas, ao mesmo tempo, sentia-se muito apoiado por as ter nos momentos difíceis.

JAS: Eu percebo isso.

MC: Os jantares tornaram-se muito mais familiares e não se podia falar de política ao pé das tias, não fazia sentido. Se ele queria falar comigo de alguma coisa, íamos para a salinha ao lado. Mas houve um afastamento. Até aí, discordássemos ou não do caminho, ele estava interessado na renovação, e eu também. Durante a primeira fase do seu governo ele queria saber o que os meus amigos pensavam, fazia-me perguntas, etc. A partir daí, acabou-se.

JAS: O facto de ele deixar de falar de política em casa, de deixar de perguntar o que se passava lá fora, é um sinal de que deixou de acreditar que pudesse haver saída para o regime. Já só estava a resistir…

MC: Eu não diria que ele deixou de acreditar, mas começa a arriscar menos. E depois vai preencher os vários lugares que vão ficando vazios com pessoas que estão mais perto dele. E acabou-se a renovação. Está à procura – ‘deem-me tempo’, diz ele.

JAS: Nas memórias, o seu pai confessa isso. Diz que os liberais são estúpidos porque, em vez de o apoiarem, de secundarem os seus esforços de renovação, põem-se contra ele e abandonam-no, atirando-o para os braços dos ultras… 

MC: Sim, ele dizia que tinha sido atraiçoado. Via os liberais como um elemento da renovação. Mas teriam de fazer um jogo conjunto. Ora, sucedeu o contrário. No que respeita à Lei de Imprensa, que ele tinha posto no seu programa, o que seria normal era os ‘liberais’ discutirem com ele o projeto de lei, não era apresentarem um projecto próprio sem lhe dizerem nada. Até porque, segundo sei, o presidente do Conselho reunia com alguma regularidade com os novos deputados, muitos dos quais tinham sido seus alunos, para discutirem os novos passos no caminho da renovação.

É curioso porque parece haver algum paralelismo entre esta relação da ala liberal com o seu pai, e a relação do seu pai com Salazar. O seu pai também contestava, demonstrava uma certa irreverência…

MC: Mas com uma diferença: o meu pai afastava-se ou ajudava o Salazar. Não procurava lixá-lo. Se não concordava com o caminho – e não concordou muitas vezes – escrevia-lhe a dizer isso e afastava-se. E isso é diferente do que se passou com a ala liberal. Houve um mal-entendido de base. E depois há o azar terrível da morte do Zé Pedro [Pinto Leite]. Foi um desgosto tremendo. O Zé Pedro tinha uma enorme influência sobre o grupo, era uma personagem extraordinária, extrovertido, autoritário, falador, pensava, afirmava, combatia. E, realmente, o grupo estava dominado por ele. Claro que a História é muito mais do que isso, mas a morte do Zé Pedro também é um corte.

JAS: Acha que Pinto Leite não teria rompido com o seu pai, como rompeu o Sá Carneiro? 

MC: De maneira nenhuma. Se chegasse a uma altura em que visse que não dava, saía, mas nunca teria ficado a apresentar projetos por fora.

JAS: Dizem que o seu pai nunca gostou do Sá Carneiro…

MC: Não tem a ver com questões pessoais. Aquilo de que não gostou foi que ele tivesse posto condições para ser deputado. ‘Só aceito se puder publicar primeiro uma declaração de princípios com as condições em que serei deputado’.

E o [José Guilherme de] Melo e Castro [líder da ANP, o partido do regime] aceitou isso e não disse nada ao meu pai. Na primeira vez que o Sá Carneiro avançou com um projeto sem dar conhecimento ao meu pai, este chamou-lhe a atenção. E o Francisco Sá Carneiro lembrou em que condições tinha aceite ser deputado. A resposta que recebeu foi: ‘Se eu tivesse tido conhecimento [de que colocou condições], você não estava cá’.

JAS: O Sá Carneiro aparece publicamente na questão do Bispo do Porto. Ele está ligado aos grupos católicos e empenha-se muito no regresso do bispo a Portugal… 

MC: É um abaixo-assinado que eu também assinei. Achámos que o bispo ser afastado da diocese por ter criticado o governo era um abuso de poder. Mas na primeira conversa que o meu pai teve comigo após a posse disse-me que ia logo avançar com duas iniciativas: o regresso de Mário Soares do exílio em S. Tomé e o regresso do Bispo do Porto à sua diocese.

JAS: Julgo que Sá Carneiro era um homem repentista e de objetivos a curto prazo. Foi o regresso do bispo, a história da Lei de Imprensa… Não sei se seria um estadista. Enfim, morreu e ninguém pode sabê-lo. Mas era muito determinado.

MC: Nesta fase foi muito combativo e agressivo. 

JAS: E teve uma grande influência em Balsemão. De início, Balsemão era um homem de direita. Escrevia artigos a favor da política colonial. Mas depois o Sá Carneiro, com o seu magnetismo, puxou-o para o lado dele. E isso irá levar o seu pai a acusá-lo de traição.

MC: O Francisco Balsemão tinha sido aluno do meu pai e mantinha relação social com a minha irmã. Um dia, depois de sondado por Melo e Castro para se candidatar a deputado, teve uma conversa particular com o meu pai, após a qual comunicou que aceitava o convite. Por isso é que quando ele se junta com o Sá Carneiro, o meu pai disse: ‘Sinto-me traído’.

Ficou magoado.

MC: Fica magoado porque a relação era também pessoal.

JAS: Devia ter a sensação de que eles queriam ‘matar o pai’. É engraçado que, quando eu era diretor do Expresso, Balsemão falava recorrentemente dessa ideia. Quando algum de nós fazia alguma coisa de que ele não gostava – por exemplo, quando o Vicente Jorge Silva saiu para fundar o Público –, Balsemão disse: ‘Ele quer matar o pai’. E depois terá dito o mesmo de mim, quando saí para fazer o Sol…

MC: Não sei onde é que o Sá Carneiro e o Balsemão queriam chegar. Substituíam o quê por quem? O facto é que o meu pai não conseguiu obter o apoio de uma ala moderna. Aquilo que ele consegue de desenvolvimento económico-social na primeira fase, não consegue politicamente na transformação da União Nacional em Ação Nacional Popular. 

JAS: Outra pessoa que tinha relações muito próximas com a vossa família era o Marcelo Rebelo de Sousa, que até ia almoçar a vossa casa. Lembra-se desse período?

MC: Muito bem.

JAS: Depois o seu pai fica muito ofendido quando ele começa a escrever no Expresso.

MC: Não, a bronca é antes. Realmente, a relação familiar era intimíssima. Quando o Marcelo nasceu, eu tinha 13 ou 14 anos. Lembro-me de o Baltazar e a Maria das Neves [pais de Marcelo Rebelo de Sousa] irem passar o verão em Carcavelos e ficarmos em casas lado a lado. O Marcelo tinha seis meses e estava muitas vezes comigo e com a minha irmã. O Marcelo, para nós, é como um irmão mais novo. E continuou a ir muito a nossa casa. Simplesmente, era um bocadinho atrevido e, já o meu pai era presidente do Conselho, vem ter com ele e diz-lhe: ‘Eu gostava de contribuir, não sei se me arranja algum jornal para onde eu possa mandar as minhas crónicas’. E o meu pai: ‘Com certeza’. Acho que foi para A Capital. Um dia, o diretor telefona ao meu pai e diz: ‘Eu tenho aqui as crónicas. Não me importo nada de as publicar, mas não são só de um autor. Nem são claramente de apoio ao seu trabalho como presidente do Conselho’. 

Não eram todas escritas por Marcelo?

MC: Ele tinha um grupo de reflexão, que se calhar também metia o Guterres, e escreveram as crónicas. O meu pai ficou verdadeiramente zangado com ele. ‘Não te admito. Isso é quebrar a confiança de uma pessoa’. O Expresso já é muito mais tarde.

Associamos muito o salazarismo à Igreja, o marcelismo não tanto. Os católicos, que tinham sido um dos pilares do Estado Novo, depois até ajudaram, como começámos a ver, a derrubar o regime. Qual era a relação do seu pai com a religião? Era praticante?

MC: Sim, talvez até aos 30 e tal anos. O meu avô, José Maria Alves Caetano, foi um católico muito ativo na paróquia dos Anjos, onde morava, tendo logo transmitido ao meu pai os fundamentos da doutrina e da prática cristã. Em 1918 é nomeado um novo pároco, Pereira dos Reis, doutorado em Roma e mais tarde reitor do Seminário dos Olivais, que iniciou toda uma geração numa visão ecuménica da religião, enquadrada pelos princípios gerais da doutrina social da Igreja sobre a pessoa humana, a sociedade e o Estado. Essa geração dos Anjos tem uma formação católica que não tem a ver com a do Salazar no seminário em Viseu. 

E a sua mãe?

MC: A minha mãe, que era uma pessoa de uma cultura extraordinária, tinha-se convertido com 18 anos.

Tardiamente.

MC: Fez questão de saber porquê. O ambiente lá em casa, quando eu era miúdo, era de ensino da religião, de catequese, de cultura da Igreja. Íamos à missa juntos. A pouco e pouco, começo a perceber que o meu pai…

Já tinha lá a semente da dúvida?

MC: Sim. Ia à missa aos domingos, mas não ia comungar, nada disso… Depois, começámos a perceber. Entendi, porque sou igual. Toda a minha formação de base foi católica, mas realmente fé não tenho. Os meus filhos também foram educados assim, com o princípio da liberdade. Aqueles que querem, são católicos, aqueles que não querem, não são.

Na sua opinião, quando é que começa o afastamento entre os católicos e o regime?

MC: Inicialmente os católicos apoiam claramente Salazar, mas depois da Segunda Guerra começam a aparecer núcleos novos de católicos oposicionistas. Vamos começar talvez pelos mais antigos de que eu me lembro: o Ribeiro Telles, o [Francisco] Sousa Tavares, o Alçada Baptista, dez anos mais velhos do que eu. Esse núcleo, inicialmente, era pró-regime, mas às tantas começa a pensar que o regime – com a repressão, as prisões políticas, o excesso de proibição – não respeita os princípios do cristianismo. Depois, dá-se o episódio do exílio do bispo do Porto. A partir daí, vão-se afastando. O Alçada cria o grupo d’O Tempo e o Modo, depois junta-se uma geração que era mais ou menos a minha com a dele. E lá dentro aquilo começa a extremar-se tudo, com o João Bénard, o Galvão Teles e outros.

Tudo pessoas do seu círculo de conhecimentos.

MC: Conhecia-os da faculdade, dos cafés, dos bairros… íamo-nos encontrando.

E apercebeu-se desse afastamento deles?

MC: Sim, sim.

Tentou, de algum modo, alertar o seu pai?

MC: Tive conversas com ele, até porque ele também se apercebia disso. Muitos, sendo totalmente contra o regime, eram antigos alunos e mantinham relação pessoal com ele, o meu pai falava com eles. Não aceitava, mas sabia. E às vezes perguntava-me, a mim ou a outro dos meus irmãos: ‘O que pensas disto?’ ou ‘porque é que aquele tomou esta atitude?’. Quem radicaliza mais, e vamos parar ao grupo da Capela do Rato, é o Nuno Teotónio Pereira, o arquiteto. Era uma pessoa bastante radical na maneira de ser, tanto que ele mesmo conta nas suas memórias que, quando foi da Guerra de Espanha, tinha ele 18 ou 19 anos, pensou em alistar-se e combater contra os comunistas.

JAS: O Teotónio chegou a estar ligado com associações que defendiam a luta armada como forma de derrubar o regime, que usaram explosivos. 

MC: Conheço essa história. O Nuno Teotónio vai radicalizando e era muito amigo do João Braula Reis. Trabalharam juntos e até ganharam prémios com o ‘Franjinhas’ [edifício de escritórios e comércio na Rua Braamcamp, em Lisboa, Prémio Valmor de 1971]. Contou-me mais tarde o João Braula que um dia estavam os dois e o Nuno lhe terá dito, talvez não exatamente nestes termos: ‘É altura de passarmos à ação armada’. E o João respondeu-lhe: ‘Desculpa, mas aí já não vou contigo. Sou contra [o regime], continuarei a ser, mas não alinho nisso’. Portanto, houve uma cisão, isto em meados dos anos 60. Há um grupo que se vai radicalizando e chega mesmo a aliar-se às brigadas revolucionárias. E todos estes movimentos, católicos, estudantis, sindicais, expõem Marcello Caetano às críticas dos ‘ultras’, que o acusam de não deixar a DGS (PIDE) fazer o seu trabalho, protegendo a retaguarda dos exércitos em combate. 

Até que organizam a célebre vigília da Capela do Rato [31 de dezembro de 1973], em que acusam o Governo de «prosseguir uma guerra criminosa com a qual tenta aniquilar os movimentos de libertação das colónias».

JAS: A oposição toda começa a perceber que aquele é o calcanhar de Aquiles do regime. Há uma coisa que nunca foi bem discutida, até porque é incómoda para a esquerda, que é a passagem de muita gente de esquerda, republicana e socialista, que sempre tinha defendido as colónias, para o campo oposto. Deixa-se arrastar pela liderança ideológica do Partido Comunista. Lembro-me, por exemplo, do Cunha Leal, que era um colonialista, e acaba a vida na oposição ao Salazar a defender a independência das colónias. Há um momento em que a oposição deixa de ser liderada pelos republicanos e passa a ser liderada pelo PCP.

MC: As frentes antifascistas.

JAS: O PCP é internacionalista, portanto é a favor das independências coloniais. E, a pouco e pouco, consegue impor essa ideia. No final, praticamente a oposição toda, até os liberais, defende a independência das colónias. O próprio Sá Carneiro chega a dizer a Kaúlza de Arriaga: ‘Quero que o senhor saiba que o vejo como o governador ilegítimo de uma colónia’.

MC: Eu tenho andado às voltas para perceber como é que o meu pai julgou que podia resolver o problema da Guerra do Ultramar. Como diz, no princípio, tirando o Partido Comunista e os seus militantes, ninguém punha a hipótese de deixar cair as Províncias Ultramarinas.

JAS: Nesse aspeto penso que o seu pai também passa por várias fases. No tempo em que era membro do Conselho Ultramarino, faz aquele célebre discurso em que fala dos ‘novos Brasis’ [ou seja, admitindo que as colónias africanas também acabariam por se tornar independentes, tal como o Brasil se tornara]. Tem, aliás, um plano bastante consistente para Angola, Moçambique e as ilhas. Só que, quando chega ao poder, percebe que o Thomaz é impermeável a qualquer ideia de evolução. E tem de recuar, de dar alguns passos atrás. E depois começa a perder apoios. O apoio dos estudantes, o apoio dos católicos, o apoio dos liberais… Começa a não ter força para impor uma evolução em África. Quando percebe isso, diz que só conta com ‘os fiéis do regime’. Aí, a única solução para desatar aquele nó é tentar que os brancos declarem a independência. Esta é a minha tese.

MC: Essa última fase parece-me um pouco de uma pessoa que se sente desesperada, vê que tudo se foi fechando. O meu amigo Joaquim Silva Pinto, que apoiou o meu pai no governo e na modernização da ANP e que sempre afirmou a sua amizade e consideração por ele, confirmou-me que tinha conhecimento direto de que o meu pai ia a Angola para a declaração do início do processo de autonomia. Isso é já no momento em que está em conflito aberto com o Thomaz. Aqui está tudo fechado, seria o momento de arriscar de uma vez. O problema da Guerra Colonial é decisivo porque é evidente que o Estado Novo teria de se modernizar e encontrar uma forma de se aproximar mais da democracia, até para ser aceite lá fora. Ao mesmo tempo, todos os processos de descolonização tinham acabado mal. O último era a Argélia, em 1961.

Pode falar-me da relação do seu pai com África? Há um texto muito curioso em que ele fala daquilo que os europeus podem beneficiar do exemplo dos africanos. Parece que ele via a civilização europeia como um pouco envelhecida, talvez sem alegria e que poderia ganhar um novo estímulo, aprender com o otimismo que havia em África. O seu pai falava sobre África e os africanos?

MC: Ele começa por ir, em 1935, no chamado ‘Cruzeiro às Colónias’, em que vão uma série de alunos universitários. Depois, como ministro das Colónias, está lá quase seis meses.

JAS: Aliás, foi com a sua mãe.

MC: Exatamente. Nós ficámos distribuídos por familiares durante esses seis meses. Mais uma vez, julgo que isso resultava do seu espírito de missão, de doutrinação, e da sua formação. Quando ia a África, achava que todos aqueles [nativos] que fosse possível deviam ser chamados a participar na administração, mas que se devia respeitar os usos e costumes dos que viviam ainda de outra maneira. Bom, é claro que, aqui, há uma certa ingenuidade, porque o facto é que, ao que parece, havia exploração dos indígenas. Em alguns casos, terrível, segundo contam. Ele gostava de ir a África, às comunidades indígenas, de conviver, e também dizia que encontrava uma vitalidade dos países tropicais. Evidentemente, continuava a pensar que a civilização europeia era aquela que tinha algo a ensinar, mas não dizia que no outro lado não havia nada.

JAS: Vou contar uma pequena história que se passou numa ida minha a África. Falei com um fulano que tinha lá vivido e agora estava a viver na Suíça. E perguntei-lhe: ‘Veio cá fazer o quê? Tem cá negócios?’. E ele: ‘Não, não tenho negócios’. E eu: ‘Tem ainda familiares?’. E ele: ‘Não, também já não tenho familiares’. O homem dizia não a tudo. E eu às tantas perguntei-lhe: ‘Então, o que vem cá fazer?’. E ele responde-me assim: ‘Sabe, venho sentir a alegria de viver, que na Europa já não sinto’. Fiquei muito impressionado. Ele ia todos os anos a África sentir aquela alegria que, de facto, aqui se perdeu.

MC: As pessoas que nasceram e viveram em África consideravam que realmente isto aqui é uma chatice.

O seu pai falava-vos das viagens a África?

MC: A primeira coisa que estava à entrada de nossa casa era um desenho de quando o meu pai foi no chamado ‘Cruzeiro às Colónias’ – o meu pai vestido com o fato que se usava quando ia às colónias, mas sem o chapéu colonial, trazendo pela mão um miúdo africano, simbolizando a sua missão civilizadora E isto foi o que ele pôs à entrada da casa. Toda a vida lá esteve. Podemos agora ter dificuldade em perceber, mas em 1992 o cardeal de Luanda, D. Alexandre do Nascimento, publicou um texto em que fala do meu pai e termina assim: «Lembro-me dele com gratidão: foi humano e Mestre de Humanismo».

Há um momento de viragem em que parece que o seu pai deixa de acreditar na guerra, que é o Massacre de Wiriyamu. O Manuel José Homem de Melo disse que «foi um desgosto que assumiu aspectos de tragédia pessoal». Confirma isso?

MC: Claro. A história de Wiriyamu foi um choque tremendo por várias razões. Para já, porque foi uma brutalidade, embora na guerra essas coisas aconteçam. Por outro lado, foi escondido e, quando por acaso ele soube, mandou investigar e a informação também lhe foi, de certo modo, sonegada. Ele acaba por saber, suspende o comandante militar, e não só, mas acaba por abrir um conflito com os altos comandos militares a meio de uma guerra. Nada perdoa os excessos cometidos, mas podia ter ficado por aí. Agora, quando toda a organização resolve abafar o caso, e ele ficar como responsável por aquilo tudo… É claro que ficou tremendamente tocado.

JAS: Acha que foi um momento de viragem?

MC: Não sei se é de viragem porque aquilo é um percurso cheio de acidentes. Mas sem dúvida é um momento em que ele já está a sentir-se apertado, e pensa que qualquer coisa que possa fazer precisará sempre do apoio das Forças Armadas. Quando as Forças Armadas lhe falham, ele fica no ar. E ainda por cima é pressionado pelo Presidente da República, que diz: ‘Isto não é para falar porque põe em causa o país’.

JAS: Por um lado, é o choque de quem defendeu sempre um tipo de relação com os negros que era paternalista, mas humana. E portanto esse episódio não pode ter deixado de o chocar bastante. Por outro lado, há uma confiança nas Forças Armadas que se perde. O Kaúlza [de Arriaga] sempre desvalorizou Wiriyamu. Nas suas memórias escreve: ‘O Marcello Caetano ficou muito impressionado porque viu umas fotografias do [Jorge] Jardim [africanista amigo de Caetano a quem este encarregou de apurar o que se passara em Wiriyamu]. Mas aquilo nem se sabe o que era’.

MC: O Kaúlza, um homem de confiança do Thomaz.

JAS: O problema colonial agravava-se de dia para dia, visto que o Exército não estava disposto a combater por mais tempo. Há as negociações em Londres entre o PAIGC e o embaixador Villas-Boas, a quem o Rui Patrício [ministro dos Negócios Estrangeiros] diz: ‘Marcello Caetano sabe e apadrinha esta solução’. Depois, temos aquelas conversas, e também não há razão nenhuma para duvidarmos, do governador-geral de Angola e do próprio Baltazar, em Moçambique, que apontam todas no mesmo sentido. Sendo claro, e nisso o seu pai é muito claro, que não se pode negociar com os movimentos com os quais Portugal está em guerra. Nem a independência negra, nem a independência branca eram a solução. Portugal desistir de um dia para o outro também não era possível… Portanto, ele tenta, a única saída: os próprios governadores, com a sua estrutura colonial, declararem independência. Era uma passagem de testemunho.

MC: Só que, entretanto, vem o 25 de Abril. 

JAS: Aqui entramos numa fase muito nebulosa, há vários mistérios. Um é o da PIDE: por que é que não intervém? Como sabe, há uma teoria das pessoas mais à direita do regime de que o seu pai tinha deixado avançar o movimento porque sentia que já não tinha saída. Os militares faziam o golpe, mantinham-no a ele como presidente do Conselho e varriam os ultras de cena. Esta teoria parece-me mirabolante. Agora, é verdade que ele se demite uma ou duas vezes nesse período. Uma delas claramente entregando o poder ao Spínola e ao Costa Gomes.

Falemos então do 25 de Abril. Imagino que para si seja um dia de má memória…

JAS: Onde estava nesse dia?

MC: Estava em Lisboa. Fui avisado, de manhã, por um amigo e liguei a telefonia.

JAS: E o que sentiu?

MC: Em termos políticos, já tinha perdido a esperança e pensava que algo iria acontecer em breve, mas é claro que também sabia que aquilo que acontecesse ia atingir o meu pai. A minha amiga Manuela Silva, com quem muito colaborei na SEDES naqueles anos do fim, escreveu-me na altura dizendo: ‘Percebo perfeitamente o que estás a passar. Por um lado, com pena de não estares connosco. Por outro lado, estás a sofrer pelo teu pai’.

JAS: O que pensou que podia acontecer ao seu pai?

MC: Tudo. Podia ter ficado ali morto no meio. Os tanques na frente, a população… – a ‘populaça’, como o [Francisco] Sousa Tavares dizia… A gente olhava para aquilo e dizia: ‘Se calhar, dali só sai morto’. Depois, dá-se a saída do Spínola e dele do Carmo, e entretanto os meus irmãos e eu fomos para casa do meu pai [em Alvalade]. Juntámo-nos e ficámos à espera do que se ia passar. Aí, há um contacto que diz que o meu pai queria falar connosco, já ele estava na Pontinha [no posto de comando do MFA]. Recebemos um telefonema. Lembro-me de que ele disse: ‘Estou aqui. Acho que caí com dignidade. Seja o que Deus quiser. Mas, entretanto, portem-se bem’.

JAS: Uma conversa curta.

MC: Sim, curtíssima.

MC: Depois, as instruções que deu foi ao meu irmão mais velho para levar uma mala com as coisas necessárias. E quanto ao resto, ‘vamos a ver, conto com vocês’.

JAS: E como é que achou que ele estava moralmente?

MC: Naquela altura, achei que estava aliviado. Ele não estava com muita saúde, porque tinha um problema numa válvula cardíaca. Tinha de ser acompanhado, mas aguentou-se ali desde a madrugada até à entrega. Como sabem, com uma dignidade extraordinária. O [Rui] Patrício chorava e o único que se manteve sentado, impecável, foi o meu pai que recebe o capitão [Salgueiro] Maia e o Spínola como deve ser. 

JAS: A certa altura, um capitão, acho eu, vem dizer que eles podiam fugir pelos telhados.

MC: Exato.

JAS: E o seu pai diz: ‘Não, eu não saio daqui pelo telhado. Janelas, telhados, traseiras, não. Eu saio pela mesma porta por onde entrei’.

MC: Houve dois que saíram pelo telhado. O meu pai recusou.

E a família? Também deviam estar com receio de que, às tantas, vos batessem à porta de casa e aparecesse um grupo de militares, não?

MC: O princípio do movimento foi algo civilizado, digamos. O meu irmão mais velho vai levar a mala do meu pai ao aeroporto no dia seguinte, e o aeroporto está ocupado pelos militares. Um major que o conhecia viu-o. ‘O que fazes aqui?’. E ele: ‘Venho trazer a mala para o meu pai’. ‘Mas não tenho instruções nenhumas. Anda lá comigo’. Isto para dizer que nos conhecíamos todos. Não sei se nesse dia ou no dia seguinte, apareceram militares lá em casa.

JAS: Do quartel de Polícia Militar…

MC: Um deles penso que era capitão, o Campos Andrada. Era das melhores famílias, campeão de esgrima, ‘menino bem’. O outro, Correia de Campos, era mais bruto, mas também educadíssimo connosco. Não digo que foram tomar posse da casa, porque a minha irmã ainda ficou lá; mas, de qualquer maneira, iam marcar posição. Por exemplo, havia uma casinha que era o sítio onde os pides faziam as suas necessidades. Eu nunca tinha ido lá dentro. Perguntaram: ‘Está fechada?’. Pumba, foi logo um pontapé.

Quem eram esses pides que costumavam estar na vossa casa? Seguranças?

MC: O presidente do Conselho tinha guarda obrigatória, e até a minha irmã teve de ter também. Ela dizia aos seguranças: ‘Deixem, tenho a minha vida, não quero ter um carro atrás de mim constantemente’, mas houve uma altura que ameaçaram raptá-la ou coisa parecida. Isso levou a que ela tivesse uma conversa com eles, em que um deles disse: ‘Isto está muito complicado. O vosso paizinho não nos deixa trabalhar’. Porque o meu pai tinha tentado, mas não conseguiu, que os interrogatórios e o comportamento da PIDE com os presos políticos fossem diferentes do que estavam a ser…

A propósito dessa forma ‘civilizada’ como decorreu a revolução. A certa altura, antes do 25 de Abril, o seu pai compara a burguesia que o contesta com a corte de Maria Antonieta, que nem imaginava o banho de sangue que estava para vir. O seu pai temia que a revolução fosse uma coisa mais violenta? Não digo como a Revolução Francesa, mas que fosse mais sangrenta do que foi?

MC: O meu pai estava convencido, há muito tempo, de que havia um confronto entre o Império Soviético e o Império Ocidental. A civilização cristã face ao marxismo-leninismo. No início, quando começa a sua vida política, aquilo que ele põe em causa é a herança do liberalismo da Revolução Francesa – a bagunça da I República, o Afonso Costa, jacobino, aquela coisa toda. A partir de certa altura, tudo se vira para o avanço do imperialismo soviético da III Internacional. No fundo, os partidos comunistas, em cada país, eram secções de uma central que estava na Rússia. E, portanto, essa convicção: ‘Estamos a enfrentar um inimigo que tem cá gente infiltrada’. Daí ele pensar que ia haver uma revolução. Os burgueses estavam bem lixados e não tinham percebido que estavam…

A cavar a sua própria sepultura.

MC: Vi e vivi isso mesmo. Havia malta da minha geração a apoiar esses movimentos, quando estavam muito mais à direita do que eu. Mas muito mais, e nunca tinham feito nada para modificar coisa nenhuma. Depois foi tudo para o Brasil e para Espanha.

Para o seu pai terá sido uma surpresa que o 25 de abril depois tenha decorrido de forma pacífica? 

MC: Também não se pode dizer que foi tão pacífico quanto isso. Eu vivi esse período em Lisboa mas, em 1975, pedi à minha mulher para levar os nossos filhos para os lados da Covilhã e fiquei cá sozinho, porque não sentia a família segura. Nos meios do Alentejo e Ribatejo, houve ocupações das explorações agrícolas com apoio das Forças Armadas. Por exemplo, a ocupação da Herdade da Torre Bela… nem quero pensar aquilo que era lá dentro. Seja como for, não houve uma guerra civil. Isso foi bom e não sei se o meu pai tinha a ideia de que, na transição, isso podia acontecer. Dependia dos militares, porque eles é que ocuparam o país. Mas o meu pai estava convencido de que o PCP ia tomar o poder.

Como aliás tentou.

JAS: Voltando ao 25 de Abril, Américo Thomaz, nas memórias, acusa o seu pai de traição – porque, resignando, tinha de depositar o poder nas mãos do Presidente da República e não nas do general Spínola…

MC: Isso é ‘música de violinos’. Onde estava o Presidente? Ninguém sabia onde é que ele estava!

JAS: Estava no Forte da Giribita, na Marginal de Cascais…

MC: Ele, Presidente da República, no meio de uma guerra civil iminente, podia ter dito: ‘Eu sou o comandante supremo das Forças Armadas, a Constituição diz isso’. Ninguém soube dele. Estava o meu pai metido no Carmo, cercado, e o Thomaz em casa com a família.

JAS: Os militares não lhe ligaram nenhuma, o que é significativo.

MC: O [Joaquim] Silva Cunha [professor de Direito e ministro da Defesa] subscreve que o meu pai não podia ter passado o Estado para as mãos do Spínola. Mas onde é que estava o Presidente da República?

JAS: Diz-se que a partir daí o seu pai e Thomaz romperam relações.

MC: Mentira.

JAS: De qualquer maneira, nas suas memórias, o Thomaz não é nada simpático para o seu pai…

MC: Pois não. Aquilo que eu sei da história é que a família do almirante Thomaz não simpatizava com o meu pai, principalmente uma das filhas. E quando [depois da revolução, o presidente do Conselho e o Presidente da República depostos] vão para a Madeira (e a minha irmã testemunhou isso) o ambiente era desagradabilíssimo. Não pela relação do meu pai com o Thomaz e vice-versa, mas porque a filha provocava toda a gente. Nem percebo como é que não aconteceu um incidente mais desagradável, porque a minha irmã não é boa de assoar. Quando foram para o Brasil, o meu pai fez questão de, regularmente, visitar o Thomaz. E ele, segundo o meu pai me contava, recebia-o normalissimamente. O Thomaz volta para cá, o meu pai morre e, passado tempo, o Thomaz publica as Memórias, que são apontamentos dele com coisas escritas por outras pessoas. Aquilo que contam as Memórias e aquilo que o meu pai contava não confere. O meu irmão Zé Maria, em representação dos quatro filhos, escreveu-lhe uma carta pondo em causa a veracidade dos factos descritos nas Memórias e criticando duramente a falta de correção e de consideração com que Marcello Caetano era aí tratado. E nunca mais ninguém nos falou.

JAS: Américo Thomaz não respondeu?

MC: Não respondeu nem nunca mais consta que tenha dado uma entrevista a falar do meu pai.

JAS: E o seu pai nunca disse mal dele?

MC: Deixe-me cá pensar…. Não. Nem falou do facto de se ter sentido abandonado no cargo por ele. Disse só: ‘Deixou-me pendurado. O almirante não teve possibilidade de fazer mais’. O meu pai era terrível com o respeito institucional. Dizer ‘o Presidente da República traiu-me’? Nem pensar! A grande preocupação dele era escrever sobre Salazar, porque sabia que toda a gente ia falar mal dele. ‘Andaram todos a bajulá-lo e agora vão dizer mal dele, por isso vou escrever as minhas memórias acentuando que o país não o dispensou’.

O seu pai devia estar ciente de que, depois do 25 de Abril, ele próprio ia ser muito vilipendiado. Quando ele está no Carmo, cercado, o que lhe iria na cabeça? Acharia que os portugueses, no fundo, eram ingratos? Porque ele tinha feito o seu melhor para desenvolver o país, liberalizar, etc. e, depois, no fim de contas, era assim que o tratavam. Ele pensaria isso? Que não o mereciam?

MC: O Depoimento [livro de memórias de Marcello Caetano] termina exatamente com uma expressão nesse género: ‘O homem que deu tudo quanto tinha ao país, e deu o melhor, e agora está deitado para o lixo’. Era muito mais elaborado, mas no fundo a ideia era essa. É claro que ele sabia que, não resolvendo o problema da guerra – que levou também a situações de repressão muito desagradáveis – e estando os militares contra ele, estava arrumado. Quanto ao resto, ele considera que deixou uma obra muito positiva, que lançou as bases de novas políticas de educação, saúde e assistência social, num quadro de grande crescimento económico. E não foi mais longe porque teve que pagar o preço da ‘liberalização’. A Zita Seabra [que então pertencia ao PCP] conta nas memórias [Foi Assim] que, ‘quando vimos que ia liberalizar, foi uma festa para nós’. Não olharam para a liberalização como ‘vamos progredir, vamos avançar’. Foi mais: ‘Vamos mas é pôr tudo isto em causa’. O novo Maio de 68 à portuguesa.