“Portugal é um país pedinte e viciado nas ajudas europeias”

O compadrio e o seguidismo são doenças que afetam Portugal. Nuno Palma acredita que partes da Europa caminham para ditaduras soft.

por Vítor Rainho e Sónia Peres Pinto

Professor na Universidade de Manchester e investigador no Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, Nuno Palma aqueceu os ânimos nacionais quando há um ano defendeu na convenção do Movimento Europa e Liberdade (MEL) que durante o Estado Novo a economia portuguesa teve um crescimento acentuado. Foi o suficiente para alguns o acusarem de ser fascista. Mas o académico explica, numa entrevista por escrito, a cegueira desses ataques.

Estando a viver no Rei no Unido, como vê, por exemplo, notícias de urgências hospitalares, nomeadamente maternidades, fechadas em Portugal?

O Reino Unido também tem alguns problemas com o seu SNS, que aliás serviu de inspiração para o nosso, mas nada que se compare. Não sou especialista em assuntos de saúde, que são compFlexos; parece-me evidente que o modelo estatista português é ineficiente e desnecessário para o que se deseja, que é um sistema de acesso gratuito (pago através dos impostos) e eficaz para todos. Sobre detalhes deve perguntar aos especialistas como o Pedro Pita Barros ou o Mário Amorim Lopes: penso que qualquer um deles daria um bom ministro da Saúde se lhes dessem liberdade de ação. Prefiro não dizer mais, porque não é a minha especialidade e detesto tudólogos, por isso não vou ser um. Agora, o que posso dizer é isto: o estado social tem que ser pago. Portugal é um país envelhecido e sem futuro. Tudo indica que nas próximas décadas não se vão resolver os problemas profundos de produtividade de que sofre a economia, com enormes ineficiências e largos setores de baixo valor acrescentado, mesmo na economia privada. A demografia também, tudo indica, vai ter uma evolução desastrosa. Logo, a qualidade do estado social só vai continuar a piorar. Os mais produtivos que insistirem em viver em Portugal vão ser asfixiados com burocracia inútil e impostos.

Por tudo isto, todos os pais responsáveis têm hoje a obrigação de dizer aos seus filhos que se querem ser ambiciosos o melhor caminho é votar com os pés: fazer as malas e emigrar. A única alternativa viável para os filhos que queiram ficar é serem graxistas profissionais com cartão de militante de um partido político em busca de tachos – ou seja, transformarem-se numa espécie de parasitas dos outros.

Em Portugal, falta mão-de-obra em setores como a saúde, educação, turismo, obras públicas, etc. Acha que esse é mais um dos fatores para o país ter um futuro deprimente, como disse há um ano?

Este é um problema que acontece em toda a Europa, mas Portugal é dos piores casos. Como em quase tudo o resto em que somos dos piores exemplos. Os europeus estão a fazer uma espécie de suicídio coletivo através da demografia. Sou a favor de uma política de imigração bastante liberal, desde que que sejam respeitadas regras básicas da sociedade que recebe. Mas também penso haver algo de patológico numa sociedade em que os habitantes originais de uma sociedade escolhem níveis de fertilidade muito baixos. Penso que há muito mais que tem que ser feito a esse nível. Numa gerontocracia como é hoje na prática Portugal, os interesses dos jovens estão pouco acutelados, e as gerações mais velhas comportam-se de forma altamente egoísta e vergonhosa com os mais jovens. Não sei se têm sempre consciência que é isso que fazem, mas é esse o resultado prático.

Tem acompanhado as peripécias da política portuguesa? O que lhe ocorre quando tem conhecimento de que o ministro das Infraestruturas anuncia o novo aeroporto de Lisboa e no dia seguinte o primeiro-ministro obriga-o a desdizer-se?

Acompanho por alto, mas prefiro não comentar casos em particular. Frequentemente há negociatas em jogo e não é tanto uma questão de egos e jogos de poder como se pensa. Não tenho muita paciência para a espuma dos dias. Os media centram-se demasiado na espuma. Estudam em detalhe casos, uns a seguir aos outros, por vezes fazendo erros de análise óbvios ou perdendo-se em especulações inúteis. Semanas depois aparece outro caso e os anteriores ficam esquecidos. E perdem sempre o todo de vista. Os políticos mais espertalhões já contam com a miopia mediática. Estudar ao microscópio algumas pulgas de um gato não é uma boa maneira de entender o gato. Não devemos perder a floresta de vista quando estudamos as árvores. Os problemas da economia e da sociedade portuguesa têm causas profundas de longo prazo que passam completamente ao lado da maior parte dos jornalistas e patéticos ‘comentadores’ – sendo estes últimos de resto de uma mediocridade intelectual quase absoluta, já para não mencionar que quase sempre eles próprios são políticos e têm ambições políticas, geralmente não declaradas. É uma perda de tempo lê-los ou ouvi-los. O essencial é isto: na segunda metade do século XIX, Portugal já era o país mais atrasado da Europa Ocidental, tanto em termos económicos como educacionais e institucionais. Somos um país estruturalmente atrasado. E absolutamente nada está a ser feito hoje para que deixe de ser assim. Pelo contrário: tudo está a ser feito para que continue a ser assim. E será. Aliás, sou bastante otimista em relação à Europa central e do Leste, por isso, é provável vermos o dia em que Portugal será o país mais atrasado de toda a União Europeia. Esse dia já esteve mais longe. No século XX, Portugal viveu apenas dois períodos de convergência económica. Durante a democracia, apenas convergimos durante um breve período: entre aproximadamente 1985 e 2000. Isto aconteceu não apenas pela maior integração europeia mas também simplesmente devido à reversão das políticas económicas desastrosas da década anterior. Alguns dos melhores ministros que tivemos em democracia foram António Barreto, que acabou com a reforma agrária, ou Luís Mira Amaral, que foi responsável pelas privatizações, pela vinda da Autoeuropa, e por outras coisas simples mas cruciais, como obrigar hospitais e câmaras a pagar a conta da luz. Quando Mira Amaral fez isso, muitas não o faziam desde o PREC – e ele começou por cortar a luz a câmaras do PSD; tudo isto foi crucial para permitir o país mais moderno em que Portugal se tornou. Digo em declaração de interesses que o Luís Mira Amaral é meu amigo, mas essa amizade também nasceu da estima que tenho por ele. Independentemente do papel de lideranças carismáticas que podem ser relevantes, em geral não sou grande adepto de História escrita a partir de personagens, pois os líderes por vezes têm menos agência que pensamos relativamente a forças de outra natureza mais estrutural. São essas que, por exemplo, permitem que em certas épocas históricas certas coisas sejam possíveis e líderes de certo tipo possam aparecer. Mas estou convicto que quando a história do Portugal contemporâneo (depois do 25 de Abril) for escrita de forma competente – o que ainda não aconteceu – pessoas com o António Barreto e Luís Mira Amaral vão ter um papel central.

A inflação tem vindo a aumentar e a tendência é para se manter. Que impactos poderá ter?

É difícil saber o efeito líquido. Alguma inflação também pode ter efeitos positivos, dentro de certos limites. Esta é uma questão bastante mais complexa do que possa parecer. Tenho vários trabalhos publicados em revistas académicas internacionais sobre inflação e macroeconomia. Alguns desses meus artigos são ensinados em várias universidades por todo o mundo. Também já tenho dado a cadeira de mestrado e doutoramento de macroeconomia em Manchester. E por tudo isto é que tenho confiança em dizer que não sei a resposta à sua pergunta. Já terá dito Sócrates – o da antiguidade, que ainda será lembrado dentro de 100 anos, ao contrário do outro – que quando mais se sabe mais se sabe o que não se sabe. Assim escreveu Platão. Mas uma coisa sei: pergunte aos comentadores da nossa praça pública, e vão estar cheios de certezas, sobre esta pergunta ou qualquer outra que lhes queira fazer. Sabem tudo.

Tendo em conta a debilidade da economia portuguesa poderemos ser um dos países mais afetados?

É possível. Portugal é o terceiro mundo da Europa. Um país relativamente rico a nível mundial, mas por todos os maus motivos. E que tudo indica que não vai fazer as reformas que levariam o país a crescer. O resto é secundário. Como já disse antes, interessa-me pouco o que possa acontecer num horizonte de meses ou mesmo um ou dois anos. O importante é pensar a prazo, ainda que os políticos tenham um horizonte mais curto. Mas a política, que é uma profissão necessária e que devia ser nobre, está na prática cheia de medíocres.

Ainda esta semana a Moddy’s disse que o risco de estagflação está a crescer na União Europeia e que Portugal é um dos países mais vulneráveis.

Isso é evidente para qualquer pessoa que veja Portugal de fora. Só na bolha mediática é que está tudo bem com Portugal. Mas não acredito que o BCE deixe a inflação durar muito tempo, porque isso iria contra o seu mandato. Penso que já está a desacelerar e será resolvida num horizonte relativamente curto. O problema fundamental da economia portuguesa é a falta de crescimento, que leva à divergência. Este problema tem causas profundas, históricas, e complexas. O resto, repito, é secundário.

As metas de crescimento poderão ser comprometidas?

Portugal é um país sem futuro. É um país profundamente desigual, ao mesmo tempo rico e europeu, mas com salários miseráveis para um parte significativa da população – mais de metade da qual ganha menos de 1000 euros por mês. É um país que tem impostos muito progressivos, mas depois é capturado por interesses corporativos, muitas vezes dos ricos. Pense no caso da TAP – quem anda de avião e qual o salário dos pilotos? – ou dos que não pagam propinas para andar na universidade pública ou ir ouvir ópera ao São Carlos. Todos estes subsídios beneficiam quem? Basta ver as melhores universidades públicas, como a Nova SBE, e observar o tipo de alunos que lá andam – como se vestem e as marcas de carros que conduzem. São os filhos dos pobres que não vão para a universidade, ou que por falta de notas devido a um contexto económico e social desfavorecido pagam propinas nas privadas. Tudo isto é fiscalmente regressivo e fundamentalmente injusto. Tudo indica que nada vai melhorar nas próximas décadas. Portugal é um país doente, mas em negação. Aliás, a própria oposição está frequentemente em negação. Votei no PSD em 2011, mas não hesito em dizer que esse Governo teve uma retórica pública desastrosa e na verdade fez poucas reformas importantes, sendo a exceção mais importante as reformas laborais do Pedro Martins, entretanto de resto já em grande parte revertidas. Deviam ter repetido até à exaustão que estavam a implementar o ‘memorando de austeridade do Sócrates’, mas fizeram antes erros graves com a questão da TSU, do ‘irrevogável’, e da muito infeliz expressão ‘ir para além da troika’. Repare como o PS com profunda desonestidade não hesita em gastar a tecla da ‘austeridade do Passos’ até à exaustão. E sabem que o povo já se esqueceu, ou não quer saber, de quantos do atual PS estiveram ao lado de Sócrates. O povo confunde o momento em que sentiu as consequências com os culpados, e por isso a coligação PSD-CDS perdeu 700 mil votos que precisava em 2015. E depois não quiseram aceitar que perderam, porque é evidente que quem consegue formar maioria no parlamento é que ganha, o resto é conversa. A conversa do diabo que aí vinha mostrou não compreenderem como funciona a UE e o BCE e foi a machadada final. Penso que vamos ter muito tempo de PS pela frente, infelizmente. Quem acha que vitórias como as de Cavaco Silva se podem repetir não compreende as tendências de longo prazo nem o contexto do que era o país na altura, e do que é agora. O Nuno Garoupa, que é a pessoa que melhor compreendeu estas tendências e previu o que ia acontecer à direita, costuma dizer que Portugal é uma cleptocracia legitimada nas urnas. Parece-me uma boa descrição do país. Devo dizer que na minha opinião ele tem uma capacidade intelectual completamente fora da escala entre a direita portuguesa, que no geral é muito limitada. Também por isso não o ouvem o suficiente, muitos preferindo uma devoção pouco refletida ao chefe atual, seja quem for, numa lógica de sebastianismo tolo e suicidário. Aviso como declaração de interesses que o Nuno Garoupa é meu amigo próximo, mas isso também tem a ver com me parecer que muitos dos avisos que faz, nomeadamente sobre a Justiça, metem o dedo na ferida dos entraves fundamentais à economia e sociedade portuguesa. Tenho uma grande admiração intelectual por ele, e quem me conhece sabe que raramente uso tais palavras sobre seja quem for. Há muito poucas pessoas no espaço público verdadeiramente independentes em Portugal. É por isso que aprecio pessoas como o Luís Aguiar-Conraria ou a Susana Peralta, ou o Pedro Magalhães, que têm a sua ideologia mas pensam nas questões assunto a assunto e vendo o que diz a literatura científica. Da minha parte posso dizer-lhe que não sou militante de nenhum partido, até tenho divergências com parte da direção (e das bases) do partido em que tenho votado, a IL, sobre várias questões (por exemplo fiscais). É normal em partidos plurais haver diversidade de pontos de vista, mas existem por aí muitas claques em busca de uma qualquer pureza ideológica e boas lideranças devem moderar os ânimos e meter essa gente na ordem. Os partidos não devem ser clubes de futebol, nem uma religião. E há linhas que não se podem ultrapassar. Por isso, e apesar de eu ter muita estima por pessoas como a Carla Castro ou o Joaquim Miranda Sarmento, até já anunciei publicamente que não volto a votar na IL nem no PSD enquanto não clarificarem por que se juntaram ao PS e não assumiram posição sobre a proposta do Conselho Superior da Magistratura sobre a criação de um grupo de trabalho para limitar a circulação de juízes entre a justiça e a política. Devia ser evidente que a independência do poder judicial tem que ser intocável. Portas giratórias desta natureza são profundamente destrutivas de um país, aliás já a transbordar de conflitos de interesse com o é o caso de Portugal. Deixar isto acontecer é mais um passo para Portugal seguir o caminho da Hungria e da Polónia. Por isso, não hesito em votar em branco, se tiver de ser, e em encorajar outros a fazer o mesmo. Não voto útil.

Acredita que o Governo corre o risco de perder ‘as contas certas’?

Isso é relativamente pouco importante, mas depende de vários fatores, sendo um dos mais importantes decisões políticas a nível europeu e também resultados eleitorais futuros em países como a Alemanha. Quando mais depressa a Europa parar de dar dinheiro a Portugal, melhor. Portugal é como um filho rebelde e com vícios que não vai aceitar a realidade enquanto continuar a receber mesada dos pais.

Que tipo de medidas poderiam ser implementas para atenuar este risco?

Insisto que a questão das contas certas é secundária relativamente ao que é preciso fazer para gerar crescimento sustentado e convergência. Aliás, os Governos de António Costa desde 2015 não têm tido dificuldade em apresentar contas certas – até durante as geringonças, com recurso a cativações, sendo estas de tal forma extremas que parece-me terem deixado dúvidas sobre se o poder de aprovar orçamentos da Assembleia da República não estava a ser esvaziado. Até o PCP deve ter compreendido o ano passado que estava a ser enganado com isto.

O PRR tem sido visto como uma tábua de salvação do crescimento económico português. Corremos o risco de desperdiçar a famosa bazuca?

A ideia do PRR (ou outros dinheiros europeus que são dados a Portugal, a fundo perdido ou não) como tábua de salvação não podia estar mais errada. Sei que é uma ideia popular, mas defendo que isso é um gigante equívoco. Este tipo de dinheiro tem exatamente o efeito contrário ao pretendido. A prazo, esse dinheiro leva a divergência com a Europa. Já tenho falado em público e escrito sobre esta matéria. Bem sei que é uma ideia contraintuitiva: como é possível ser mau receber dinheiro, e não houve partes pobres do interior do país que construíram infraestruturas graças a isto, etc? O mesmo foi certamente pensado por Castela no século XVI quando recebeu enormes quantidades de prata Americana ou Portugal no século XVIII com o ouro do Brasil. Ou com a Venezuela ou a Nigéria, ou até mesmo Angola no século XX, quando descobriram o petróleo. E, no entanto, em todos estes casos os resultados não foram brilhantes: a prazo, a economia sofreu, e o sistema político também. Há mecanismos bem estudados na literatura académica através dos quais as economias e instituições políticas, especialmente quando já relativamente frágeis à partida, pioram com a chegada de fundos desta natureza. Os fundos europeus levam a uma economia portuguesa menos diversificada, mais assente no sector não-transacionável, e ajudam a eternizar o PS no poder, até porque o dinheiro europeu funciona como aspirinas que escondem os sintomas da doença. Não hesito em dizer que têm consequências muito negativas a prazo, levando ao resultado exatamente contrário do desejado. Note que é preciso separar a União Europeia – que apoio – desta política de fundos de emergência e estruturais, que devemos concluir que não está a funcionar e deve ser abandonada. A UE é muito mais que isso.

É um dossiê que tem estado envolvido em polémica tendo em conta as escolhas dos projetos (grande maioria para a mão de duas ou três grandes empresas) e com taxa de pagamento muito aquém do desejável…

O PRR era para reagir à pandemia. Com as demoras destas coisas, chegou já depois da pandemia. Não houve tempo nem estratégia para pensar coisa nenhuma e havia contas para pagar depois de uma década de baixo investimento público. A fatia de leão foi para o Estado, e está a ser usado pessimamente. Há casos recentes de dinheiro do PRR a ser utilizado para despesas correntes, para investimento em capital físico que devia sair do orçamento, e para criar vagas no ensino superior (muitas das quais no ISCTE). Dificilmente isto são reformas. Mas tudo isto era previsível, e eu próprio avisei que isto ia acontecer. Existe um portal de transparência (https://transparencia.gov.pt/pt/), mas devia estar atualizado com tudo o que foi acordado no Art. 360º da Lei do Orçamento do Estado (Lei nº 75-B/2020 de 31 de Dezembro). Tinha que estar atualizado, tanto quanto possível em tempo real, com informações pormenorizadas sobre como é investido o dinheiro e se as metas acordadas estão ou não a ser cumpridas. E não está, devido ao poder político ser, no mínimo, medroso.

Outra dor de cabeça diz respeito aos preços dos custos de energia. A resposta tem sido suficiente? Como viu a polémica em torno dos aumentos dos preços da energia anunciados pela Endesa e a resposta do Governo?

Não comento casos concretos, mas digo que independentemente da demagogia crónica e tiques autoritários do PS, que por vezes incluem ameaças diretas do meu ponto de vista inaceitáveis numa democracia, por vezes PSD e Liberais vivem numa bolha afastada da forma de pensar do português mediano, que se deixa facilmente convencer que a esquerda é que defende os interesses do povo contra os capitalistas extorsionários. Tem que haver uma melhor e mais independente regulação em Portugal, mas também é o caso que liberais não podem dar a ideia de defender lucros e grandes negócios, mas sim a livre concorrência que em última análise beneficiará os consumidores.

Vários partidos de esquerda têm vindo a pedir ao Governo para avançar com taxas sobre lucros extraordinários. A solução passa por aí?

Não. O que não implica que a regulação que existe seja a adequada. Repito que PSD e a IL não podem passar a imagem de que são a favor ‘dos capitalistas’ ou dos lucros. Aliás, ser liberal não é isso. O seu papel não tem que ser proteger os grandes negócios, ou pelo menos passar a ideia ao português mediano que é isso que fazem, à custa da carteira do povo. Especialmente nos casos, e existem, em que o lucro é conseguido graças à proximidade ao poder político, regulação ineficiente ou capturada, e oligopólios. O que é necessário é haver verdadeira concorrência. Nos casos em que existam monopólios naturais, é preciso ver o que diz a literatura académica internacional sobre qual a regulação adequada. É uma questão complexa. Sobre este último ponto, acrescento que por vezes eu sou acusado, por ‘comentadores’ desonestos e/ou de capacidade intelectual medíocre, de dizer que apenas académicos podem ser bons políticos. Mas eu nunca disse isto. O que tenho dito, e é completamente diferente, é que os políticos devem justificar as decisões que tomam com base na literatura académica existente. De outra forma estão a defender magia negra com base em palpites – ou pior no caso de existirem conflitos de interesse, que são tão comuns em Portugal (aliás, ainda recentemente foi anunciado que dúzias de deputados que anunciam estar em exclusividade na verdade têm quotas e gerem empresas). Como não tenho qualquer ambição política nem interesse em receber tachos seja de quem for, tenho a liberdade de dizer o que penso. Não quer dizer que não tenha nada a perder, e já tenho recebido ameaças. Mas muito pouca gente que fala no espaço público tem esta liberdade em Portugal. É preciso sempre olhar para a política sem romance, na memorável expressão do prémio Nobel da Economia James Buchanan. Que ambições tem e que interesses defende quem fala? Os políticos – e os comentadores que querem ser políticos – não são observadores isentos. Estão preocupados consigo próprios em primeiro lugar.

O turismo continua a ser visto com um dos principais motores de crescimento da economia. Este impasse em torno da localização do novo aeroporto poderá comprometer esta atividade e a sua importância?

O turismo tem o seu lugar, mas Portugal precisa de uma economia diversificada.

Quando falou no passado no ataque às liberdades individuais e coletivas, o que pensa da polémica entre Augusto Santos Silva e André Ventura, em que o presidente da AR repreende o líder do Chega?

Penso ser hoje consensual entre quem está bem informado que o Chega e o PS têm uma relação simbiótica. O Chega é o principal aliado do PS para acabar com o PSD e eternizar-se no poder. O Chega ganha com a frustração crescente de muitos, causada em parte pela incompetência governativa do PS. Ambos ganham com a polarização. Também por isto, sou dos que pensa que uma coligação pós-eleitoral com o Chega não deve estar à partida fora de cima da mesa. E digam o que disserem ex ante, se a direita e liberais tiverem maioria com o Chega, a pressão para uma ‘geringonça’ de direita vai ser inevitável. Aconteceu noutros países. E já sei que vai haver quem me acuse que digo que ‘não gosto do Chega, mas’. Mas olhe, também digo: não gosto do PCP, mas não acho que deva ser ilegalizado. Deve ser derrotado nas urnas, tal como o Chega. Não sei bem o que defende o Chega, parecem ser um bando de oportunistas. Já o PCP, sei o que defende: uma ditadura. É lamentável o duplo padrão de pessoas, como a Ana Gomes, que defendem a ilegalização do Chega mas não do PCP ou BE.

Como viu a subida do Chega nas últimas eleições?

Não me agrada o Chega porque sou politicamente moderado por natureza e nunca fui um conservador a nível dos costumes sociais. Repudio por completo algumas das posições do Chega. Penso que não têm uma ideologia bem determinada, nem sequer na economia (em que defenderam não liquidar a TAP, talvez o maior disparate económico de tempos recentes). Mas os deputados que foram eleitos representam uma parte importante da população que tem o direito a ser representada (e em ter acesso à comunicação social em termos similares aos outros partidos). A conversa da ‘normalização’ é parva e tem que ser evitada a todo o custo. O Riccardo Marchi tem toda a razão quando diz isso. Repare que o resultado das últimas eleições foi que apenas um partido que se afirmava como sendo de direita elegeu deputados – o Chega. Esta é uma situação muito anómala a nível europeu. A direita envergonhada e em negação de Rui Rio vergou-se à superioridade moral da esquerda. O PSD de Rio tornou-se isso mesmo, um partido social-democrata – o que corresponde, aliás, à esquerda no contexto Europeu. Tudo isto tem causas mais profundas do que possa parecer: Rui Rio era incompetente, mas o país é mesmo de esquerda, disso não tenho dúvidas. Já falei noutras ocasiões sobre as causas profundas que explicam isso. Não faz qualquer sentido afirmar que o único partido que elegeu deputados que se afirmam de direita não tem o direito a existir. Em tempos também chamaram fascistas aos deputados do CDS. A esquerda intolerante não pode ser tolerada.

O que acha que mudou na Europa com a Guerra na Ucrânia?

Do meu ponto de vista, a guerra na Ucrânia será vista a prazo como um bênção disfarçada para a Europa. Quebrou as ilusões de muitos que ainda subsistiam sobre Putin e sobre a extrema-direita e a extrema-esquerda. A nível nacional, por exemplo, André Ventura, que andou aos abraços e jantares com Marine le Pen, logo percebeu que o povo estava com a Ucrânia e para aí virou. O mesmo fez o BE, como cataventos profissionais que são. Perder ainda mais deputados seria uma maçada, até porque seriam precisos mais cortes de funcionários, ainda por cima precários, o que toda a gente sabe não ser ético! Safam-se com a memória curta e interesses egoístas que sabem que o povo tem.

Surpreendeu-o o ‘apoio’ do PCP à Rússia, optando por condenar os EUA, a NATO e a Europa?

Evidentemente que não. O PCP ao menos é coerente. Mas todo o episódio revelou a parvoíce dos que ainda diziam que o PCP era ‘indispensável à democracia’ – alguns desses mesmos agora passaram a dizer o contrário, bem sei. Tendo terminado as geringonças é mais fácil, para alívio do PS. Mas pense, deixamos o PCP manipular a nossa memória histórica através da sua direção do Museu do Aljube, por exemplo – um museu que tem a palavra Liberdade no título. Um país que permite isto não é nada, e nunca será nada.

Pensa que os radicalismos de esquerda e de direita irão conquistar cada vez mais espaço na Europa?

É um cenário possível, infelizmente. Penso que enquanto os problemas de crescimento e demografia da Europa não se resolverem – e são especialmente graves em Portugal – a polarização vai ter tendência a continuar. Não me admirava se daqui a uma ou duas décadas o país estiver polarizado à volta de PS vs. Chega. É um cenário lamentável, mas possível e diria que até provável. Por enquanto, o PS está bastante à vontade no poder porque sabe que escândalos pouco afetam os seus resultados eleitorais. Mas note que as gerações mais jovens do PS, lideradas por Pedro Nuno Santos, são ideologicamente do BE; não são o PS de Mário Soares. Por isso ou se moderam ou podem bem vir aí tempos conturbados.

Corremos o risco de vermos serem implementadas ditaduras de direita e de esquerda?

A situação da Hungria, e em menor medida da Polónia, já é um caso próximo de ditaduras soft, o que é inaceitável. A UE não pode ter ditaduras no seu seio. Mas são casos complexos, porque há uma legitimação nas urnas que não é completamente artificial. Há uma gigante lavagem cerebral que funciona numa percentagem suficiente da população. Há intimidação e cada vez menos independência judicial. Quem não gosta, sai. Portugal para aí caminha, mas pelo lado esquerdo, que é um caminho mais humano a nível dos costumes mas que consegue ser mais desastroso a nível da economia.

A crise de Taiwan poderá ajudar a extremar ainda mais as posições no mundo?

Nada indica que a China (PRC) se vá reformar politicamente, o que poderia levar a uma unificação pacífica. Tudo indica que o status quo de Taiwan vai continuar no limbo em que tem estado desde o fim da guerra civil em 1949.

O que mudou no Reino Unido com a saída da UE?

Até agora não mudou muita coisa mas também ainda não passou muito tempo. Fui um forte opositor contra o Brexit. Foi uma tempestade perfeita de coisas que correram mal. Por exemplo, o Partido Trabalhista, que é normalmente competente e moderado, tinha na altura o seu pior líder de sempre. Tal como Portugal, o Reino Unido tem tido políticos péssimos e tem uma geração de baby boomers muito egoísta e mal informada. Tal como Portugal, são os mais velhos e com níveis de educação baixos que votam maioritariamente em políticas demagógicas. O Partido Conservador tornou-se numa anedota de mau gosto. Mas ao contrário de Portugal, o país e a sua economia têm muitos aspetos fortes, e sou otimista em relação ao futuro do Reino Unido.

O que pensou quando soube que o presidente da Câmara de Lisboa se mostrou disponível para fazer uma homenagem a Vasco Gonçalves, com uma estátua ou um busto?

Devia haver qualquer coisa de mais relevante a acontecer por causa da qual importava distrair a agenda mediática.

Disse há um ano que Portugal é um país incapaz de se governar decentemente a si próprio, e assim continuará a ser enquanto forem outros a pagar a conta das asneiras. Reforçou essa ideia?

Fiquei na mesma. Assim é e assim será, tudo indica. Infelizmente.

Também disse que, se o país crescesse e prosperasse, não haveria problemas de legitimidade. Portugal vive um momento de prosperidade, já que o PS teve maioria absoluta?

Não sei se compreendi a sua pergunta. É evidente que Portugal não vive um momento de prosperidade: a divergência em relação à Europa continua, e vai continuar. Quando falei de legitimidade referi-me à forma como as elites políticas atuais, que metem dó de tão medíocres que são, tremem mal se diz o óbvio: que Portugal está a falhar. E tentam, pateticamente, culpar tudo e todos menos elas próprias: a culpa é de bodes expiatórios, sejam o Estado Novo, o Passos, a UE, os especuladores internacionais, etc. Todos menos os que governam. Note que graças à abstenção, ao método de Hondt, e à ausência de círculos de compensação, o PS conseguiu uma maioria absoluta com apenas cerca de 21% do eleitorado oficial a votar PS. Votaram PS apenas 2,3M dos 5,6M que votaram num eleitorado oficial de 10,8 milhões. Menos de metade dos que votaram, votaram PS. E mesmo isto graças a muito voto útil à esquerda. Mesmo só em território nacional são apenas 2,2M de uma população adulta que deve andar nos 8,4M. Dificilmente isto corresponde a uma forte legitimidade democrática que o Governo tanto gosta de invocar. E o que devia fazer o Governo com uma maioria absoluta? As reformas de que o país precisa. Mas nada faz, e nada fará. Não há estratégia, não há planeamento, nem pensamento. Só há uma mão estendida, de um país que coletivamente se resignou a ser pedinte. Um viciado que não quer largar o vício das ajudas europeias. A UE tem que perceber que o país só vai decidir mudar de vida quando essas ajudas acabarem. Estão a ter o efeito contrário ao desejado.

Em Portugal, nos últimos tempos, têm surgido várias polémicas sobre o racismo. Uma atriz foi atacada por ter feito tranças, já que esse mudança de visual pertence à comunidade africana, e um cantor português pediu desculpas por ter participado numa música cujo nome é Filha de Tuga, já que um branco não pode perceber os problemas dos mulatos ou negros. Acha que caminhamos para uma ditadura do politicamente correto?

Ouvi falar do primeiro caso mas não do segundo, e mais uma vez prefiro não comentar casos concretos. Parece-me que Portugal tem os ingredientes certos para as guerras culturais serem férteis. Durante décadas, a direita e liberais (que antes estavam principalmente no PSD e CDS) perderam terreno por passarem a ideia de terem coisas a dizer sobre a economia mas não outro tipo de problemas sociais. Isso sempre me pareceu um enorme erro, e que me parece continuarem a fazer hoje, ainda que menos. Não podem ter medo de defender a liberdade de expressão e a igualdade de oportunidades – mas não de resultados. Mas também lhe digo que não só as redes sociais, como o próprio espaço público, por exemplo artigos de opinião nos jornais e comentários na TV – são um sem fim de deturpações, distorções, conflitos de interesse não declarados, acusações de intenções obscuras por parte de terceiros, manipulações e sinalização de virtude. Já sei que isso mesmo me vai acontecer a mim com esta entrevista que lhe estou a dar. É sempre a mesma coisa, e muito disso é deliberado e faz parte de uma estratégia de tentativa de silenciamento através de autocensura que está a criar uma sociedade pouco diversa e antiliberal.

Conhecendo o ensino superior do Reino Unido e de Portugal, que diferenças existem?

São gigantes. Muito maiores do que as pessoas em Portugal normalmente pensam. Especialmente a bolha académica portuguesa, que é em geral patética. A endogamia é nauseante. A qualidade do ensino superior em Portugal até parece ser razoável em áreas como medicina mas é miserável nas humanidades, história, direito e ciências sociais. Em economia, há a exceção de duas ou três universidades que são razoáveis; penso que será óbvio a quais me refiro, mas mesmo nessas há uma obsessão algo parola com rankings internacionais que na verdade são facilmente manipuláveis por quem não tem outra forma de se tentar meter em bicos de pés, e têm pouco a ver com a qualidade da investigação. Se isso fosse feito para atrair fundos que depois fossem bem investidos, poderia fazer sentido. Mas não é isto que em geral acontece. Não é por falta de capacidade dos alunos. O ensino pré-universitário em Portugal não é um completo desastre, mesmo o público, apesar de como tudo o resto se ter vindo a degradar. Mas as gerações jovens nem estão mal preparadas no momento em que chegam à universidade – vários estudos internacionais como o PISA mostram isto. O problema principal é dos professores e administradores. Começa logo com as contratações, que em Portugal geralmente não acontecem por mérito. A maior parte dos concursos estão viciados à partida, requerendo as competências específicas de quem querem contratar, geralmente alguém ‘da casa’, só faltando a fotografia. Mesmo as poucas universidades que contratam no mercado internacional de talento fazem-no com muitas limitações. Em outros concursos há conflitos de interesse claro: os orientadores e coautores dos candidatos sentam-se em júris como se fossem avaliadores independentes. Conheço casos escandalosos, como o do Jorge Fernandes, talvez o melhor cientista político português da sua geração, que tem dificuldade em conseguir um lugar do quadro em Portugal – mas consegue lugar de professor associado na Universidade Carlos III em Madrid. Eu próprio se quisesse lugar em Portugal não sei se conseguia – não tenho tentado, nem tenho intenção de o fazer, mas tenho dúvidas. Quem é cego não sabe ensinar a ver, nem sabe escolher, lamento. Há um enorme egoísmo, incompetência e falta de noção dos instalados, e também há um sem fim de vinganças, invejas, ameaças, retaliações e ódios pessoais. Vivem mentalmente prisioneiros na caverna de Platão – a da alegoria. Um ambiente nada propício ao ensino e à investigação. Devo ser claro que há exceções. Existem professores excelentes e investigadores de primeira linha em Portugal. Há várias pessoas que admiro, e normalmente não são pessoas que participem no espaço público porque estão, e bem, centradas na sua carreira académica. Mas são um para cada 50 vaidosos que se acham brilhantes sem terem qualquer valor, e outros 50 para quem a carreira académica é só uma forma de chegar à política. Alguns destes últimos até fazem figuras bem tristes quando vão comentar para a TV a defender acefalamente os seus partidos. São políticos na academia e fingem ser académicos na política. Há um sem-fim de exemplos de pessoas que nunca tiveram um currículo académico de qualquer relevância mas fingem ser grandes professores. Depois alguns têm sucesso como políticos, como o atual Presidente da República e o presidente da Assembleia da República – ou seja, as duas primeiras figuras do Estado. E há outros mais jovens a seguir o mesmo caminho exatamente, como o atual ministro da Cultura. Menciono estes apenas por serem casos óbvios. Todos serão figuras completamente irrelevantes a prazo – tal como hoje ninguém sabe dizer o nome de académicos e políticos de segunda ordem do século XIX. Mas por enquanto temos que levar com eles e com as más decisões que vão tomando. Noto, no entanto, que para quem quer de facto seguir uma carreira académica séria em Portugal, o caminho é muito difícil. As condições para investigação não são as melhores. Muitos, senão a maior parte, dos lugares estão ocupados por critérios que nada devem ao mérito, como disse. Qualquer pessoa que publique bons trabalhos é um herói. Os professores dão muitas aulas e a FCT tem direções e júris inenarráveis. É tudo uma tristeza sem fim.