O PS quer que as escolas do país, públicas ou privadas, passem a «respeitar» – palavras do deputado Miguel Costa Matos – a autodeterminação dos seus alunos, desde logo no nome autoatribuído, mas não só. Por exemplo, também no vestuário, nos casos em que seja obrigatório o uso de uniforme, os alunos devem poder escolher a opção com que mais se identificam. E mais: as crianças e jovens devem poder aceder às casas de banho e balneários «tendo sempre em consideração a sua vontade expressa e assegurando a sua intimidade e singularidade», conforme pode ler-se num projeto lei assinado à cabeça por Isabel Moreira e por mais três dezenas de deputados socialistas, incluindo o seu líder parlamentar, Eurico Brilhante Dias, e parlamentares como Edite Estrela ou Pedro Delgado Alves.
O documento é, obviamente, polémico, porque, se é certo que o projeto de lei surge na sequência da Lei n.º 38/2018 – «que estabelece o direito à autodeterminação da identidade de género e expressão de género e o direito à proteção das características sexuais de cada pessoa», e que, portanto, só se refere a cidadãos com, pelo menos, 16 anos de idade –, o articulado refere, várias vezes, a palavra «criança». Assim, não falta quem aponte a incongruência entre a lei a regulamentar (em vigor) e a lei regulamentadora (agora proposta).
Ao Nascer do SOL, a deputada socialista Isabel Moreira, escusando-se a responder às questões colocadas, por questões de disponibilidade, fez questão de realçar que «a lei de 2018 é o quadro». «Como se recordará, o TC considerou que aquilo que fora regulamentado teria de ser feito por lei da AR. Trata-se apenas disso, de incorporar em lei o que havia sido regulamentado», esclareceu.
Quem desenvolveu mais sobre o assunto foi o seu colega de bancada, Miguel Costa Matos, líder da Juventude Socialista (JS), que garantiu não se tratar de «rapazes a entrar nas casas de banho das raparigas», mas sim de «as escolas poderem respeitar quando uma criança muda de sexo». «O que está previsto na nossa legislação é que, abaixo dos 16, anos exige um extenso processo de avaliação médica e diagnóstico médico. Portanto, não é um rapaz entrar na casa de banho de uma rapariga assim à toa», defende Costa Matos, para quem este projeto de lei passa por ver a escola a «respeitar esse processo que a criança está a fazer», até porque «sabemos que a disforia de género – as pessoas estarem com um sexo biológico errado relativamente àquilo que é a sua identidade de género – é algo que existe, mesmo em crianças, não é uma coisa que aparece a partir de certa idade».
Para o deputado socialista, «é assim tão simples». «Acho que dizer que é rapazes a entrar em casas de banho de raparigas é criar uma ideia que as pessoas ainda são rapazes, apesar de, medicamente, terem sido diagnosticados como estando no sexo errado e que, como consequência, terem começado um processo para mudarem de sexo. Se isso aconteceu, tem de ser respeitado pela escola», defende.
A argumentação dos deputados socialistas não convence a Oposição. André Ventura, líder do Chega, aponta o dedo à «discordância» entre a lei em vigor e o projeto lei agora apresentado. «Desde logo, este projeto parece contrariar aquilo está atualmente na lei: apenas as pessoas maiores de idade podem iniciar o processo para mudança de sexo, ou as que tiverem mais de 16 anos e tenham autorização dos pais», refere Ventura, em declarações ao Nascer do SOL. E argumenta: «Por uma razão simples: as crianças não têm ainda conhecimento e maturidade para entender todas as mudanças que atravessam». Assim, «se não têm capacidade para iniciar esse processo, qual o sentido de permitir que socialmente o façam?», questiona Ventura, acusando o projeto do grupo de deputados socialistas encabeçado por Isabel Moreira de pretender «contornar a lei e abrir o espaço para o debate sobre os tratamentos hormonais em crianças, que consubstanciam um verdadeiro perigo para a sua saúde física e mental».
O líder do Chega lembra, por outro lado, os casos de ‘arrependimento’ em crianças, que, diz, «não são raros». «Pelo contrário, há estudos que indicam que 40% das crianças que foram diagnosticadas com disforia de género, deixaram de o ser na puberdade. Não podemos ficar indiferentes a estes dados nem aos impactos que estas mudanças e instabilidade podem ter na vida de crianças e jovens», alerta Ventura, ressalvando que o Chega é «contra a discriminação e nada tem contra a formação de professores e auxiliares para os ajudar a lidar com crianças que sejam diagnosticadas com disforia de género». Algo «bem diferente», no entanto, de «se promover e estimular certos tipos de comportamentos sem qualquer suporte técnico ou científico».
Em jeito de conclusão, Ventura faz eco de críticas que já fez no passado, alertando mara uma «intromissão» do Estado «naquela que é a esfera privada das famílias e dos seus direitos».
«Incutir nas crianças a ideia de que o género é uma construção pessoal tem perigos evidentes para a sua construção enquanto pessoa, causando-lhes confusão e fazendo-as perder referências. Tudo isto acontecer e ser fomentado em ambiente escolar não passa da usurpação dos direitos dos pais no que diz respeito à educação dos seus filhos, principalmente em temas do foro íntimo como é o caso da sexualidade», conclui Ventura.
Já a deputada do PSD Lina Lopes é mais moderada, considerando, no entanto, que, de facto, a escola é «muito importante na vida das crianças e dos jovens», mas a sua finalidade «não é definir o que estes podem ou não podem fazer». A escola deve, sim, «ensinar as crianças e os jovens a ‘aprender a aprender’ (como dizia Humboldt), de forma a desenvolverem a autonomia e a autodeterminação necessárias para saberem o que podem vir a fazer por si e pelos outros», defende, em declarações por escrito ao Nascer do SOL.
Sobre o projeto de lei, no entanto, a social-democrata limita-se a esclarecer que o mesmo se debruça apenas sobre «o conteúdo do artigo 12.º, intitulado ‘Educação e ensino’, da Lei nº 38/2018, pois foi neste artigo que o Tribunal [Constitucional] detetou a inconstitucionalidade». Lina Lopes realça que «se o artigo 12º do diploma do Governo se centrava na ‘autonomia, privacidade e autodeterminação das crianças e jovens’ em contexto escolar, o novo Projeto de Lei do PS é mais abrangente e alarga o seu âmbito aos ‘estudantes, pessoal docente e não docente que realizem transições sociais de identidade e expressão de género’». Se for aprovado – o que a social-democrata acha provável – prevê-se então que «as escolas venham a ser confrontadas com a necessidade de introduzirem modificações apreciáveis na organização de alguns espaços e equipamento e na forma como os seus dirigentes e funcionários devem abordar os assuntos de género», o que terá efeitos, principalmente, a nível orçamental, com «a a formação dos dirigentes e funcionários das escolas» e «obras de alteração de vários espaços nas escolas».
‘Uma agenda errada’
Quem, por sua vez, levantou mais questões sobre este projeto de lei foi Francisco Camacho, líder da Juventude Popular, que acusa «o período em que este documento surge» de ser «curioso». «Quando se discute o novo Orçamento do Estado e algumas opções estruturais para o futuro do país, o PS atira areia para cima dos olhos portugueses, distraindo parte das atenções com esta matéria e sem qualquer respeito pela sensibilidade e importância das matérias em causa, pelos tempos próprios de discussão nem, tampouco, pelas opiniões dos especialistas», considera o jovem centrista, que acusa este documento de ser «a prova de que existe uma intromissão do Estado no sistema de ensino que quer que toda a gente acredite na teoria de que as diferenças entre homens e mulheres são só uma construção social, sendo irrelevantes as características biológicas das pessoas».
Ao Nascer do SOL, Camacho contraria Costa Matos, garantindo que «esta agenda tem um erro na sua origem: dispensar o acompanhamento de profissionais de saúde, nomeadamente médicos». Em 2018, diz o líder da JP, «o PS e a esquerda radical abdicaram de forma grave do parecer médico que validasse a mudança de sexo». «Perante processos tão complexos e duros para quem os vive, a leviandade deste tipo de legislação pode ter efeitos devastadores nas condições de saúde mental de jovens e adolescentes que, ao abrigo de um Estado que nega a ciência, podem não ser acompanhados por profissionais capazes. Contrariar a ciência e dispensar a medicina é um erro e o Parlamento não anda a estudar as consequências de medidas que tem tomado», acusa, questionando: «Será que esquecemos todos o que quer dizer menoridade?» Camacho afirma que quem acredita «nesta corrente» são pessoas que «desconsideram o que é o desenvolvimento psíquico, mental e o processo de amadurecimento das pessoas», pelo que «não têm vergonha em fazer este tipo de propostas e de promover processos de ‘transição social’, cujo resultado é devastador».
Dúvidas constitucionais
O assunto da autodeterminação dos alunos e da forma como as escolas devem ou não tratá-los já caiu nas mãos do Tribunal Constitucional – que chumbou o decreto regulamentar, considerando que este tinha de ter a forma de lei – e, ao Nascer do SOL, o constitucionalista Jorge Bacelar Gouveia, após assegurar ser «globalmente contra esta lei», defende que as inconstitucionalidades subsistem neste projeto de lei.
As «inconstitucionalidade orgânicas e formais, que vão subsistir, consistem no facto de esta lei, sendo aprovada no âmbito da competência legislativa da AR, ser todavia uma lei incompleta ou quase uma lei-quadro, que dá vários cheques em branco às autoridades administrativas – numa deslegalização que é inconstitucional – na concretização de situações que vão bulir com os direitos fundamentais dos jovens, designadamente quanto prevê a implantação de mecanismos de deteção de dificuldades de incerteza na identidade de género», disse ao Nascer do SOL.
Bacelar Gouveia considera tratar-se, ainda assim, de uma lei «assente em boas intenções, que é enfrentar a incerteza que os jovens podem ter, em certo percurso da sua vida, quanto à sua identidade sexual ou de género». Esta é, todavia, «uma minoria restrita de casos muitos raros», considera, argumentando que assim se faz «uma lei que só na sua aparência aborda um problema geral».
Para o constitucionalista, o maior ‘melindre’ deste projeto de lei está aí mesmo: «Ao ‘transferir’ para a escola – ou seja, para terceiros, como colegas, professores, funcionários e estruturas administrativas, tendo por cima a legislação e a administração do Estado – um conjunto de responsabilidades que são, em primeiro lugar, direito e dever da família». Trata-se da «célula fundamental da sociedade, a qual o Estado não pode substituir e muito menos oprimir», acusa o constitucionalista, para quem «o poder paternal pertence aos pais e encarregados de educação» e não ao Estado ou aos outros intervenientes no circuito escolar.
O constitucionalista – que diz «discordar em absoluto da teoria da ideologia do género, coisa muito diferente da igualdade de género, justa e necessária, a qual assenta em pressupostos antropológicos errados e numa hiperbolização da vontade individual que é temerária para ser determinante numa idade, como diz o projeto de lei, de transição e de amadurecimento, como é próprio da puberdade e da adolescência» – argumenta existirem também inconstitucionalidades «óbvias, não apenas no direito à privacidade e no direito à intimidade da vida familiar, como no papel que a Constituição reservou aos pais e aos encarregados de educação». Neste âmbito, acusa Bacelar Gouveia, o Estado não pode ‘expropriar’ os poderes funcionais que são relativos à educação dos filhos em aspetos essências da sua vida, «sendo para isso que os pais ou encarregados de educação servem» e agir «como se fosse a sua nova família, o que seria próprio de Estado totalitários, em que as crianças e os jovens são ‘arrancados’ à vida familiar para serem ‘formatados’ pelos desígnios do Estado».
Em jeito de conclusão, Bacelar Gouveia augura que esta é uma orientação que «compromete o contrato constitucional e que fere diretamente a responsabilidade das famílias», para além de estar «isolada em termos internacionais, assumindo-se ainda com uma impossível aplicação prática, sendo certo que durante um ano letivo não é viável, em cada aula, o aluno ser chamado, sucessivamente, por géneros que vão mudando».