António Machado. “É preciso regular e fiscalizar o mercado de arrendamento”

O secretário-geral da Associação dos Inquilinos Lisbonenses defende que só em Lisboa se das 50 mil casas vazias 10% fossem colocadas no mercado “estaríamos a falar de cinco mil, o que resolveria os problemas de muitas pessoas”.

O que acha das medidas do Governo? Pensa que vai resolver o problema da habitação em Portugal?

As medidas do Governo podem estar cheias de boas intenções, mas há um aspeto que convém realçar e que está relacionado com a não resolução do pecado original do que se está passar que é a não revogação da lei Cristas de Passos Coelho – a célebre lei dos despejos – que veio desarticular de forma profunda o mercado de arrendamento e cujos reflexos estão na ordem do dia. A sua não resolução e a não criação de uma lei nova que estabilize, que viabilize e fiscalize o mercado de arrendamento muito dificilmente resolverá os problemas. Por outro lado, esperemos que haja um conjunto de medidas que, apesar de tudo, possam atenuar alguns problemas de funcionamento do mercado, designadamente o que defendemos há muito tempo que é o facto de os contratos antigos, antes de 90, não transitarem para o NRAU [Novo Regime do Arrendamento Urbano], porque estamos a falar de pessoas mais velhas e com rendimentos relativamente baixos. Em relação às rendas, é preciso ter em conta os rendimentos das pessoas, uma vez que nem todas têm recursos suficientes para pagar as chamadas rendas de mercado. Ainda assim, a proposta do Governo vai no sentido de subsidiar durante uns tempos a manutenção dos contratos.

Enquanto isso vamos assistindo a um “congelamento” dos valores…

Não há congelamento. As rendas mais antigas vão passar pelo regime geral da atualização anual. No entanto, uma coisa é passar de 100 para 110 euros, outra é passar de 100 para 200 euros. Neste último caso terá de haver uma intervenção do Estado no sentido de cobrir a diferença e aí os senhorios já conseguem beneficiar de um rendimento maior. Mas também se espera que com esses rendimentos mais elevados, os senhorios façam as obras que não fizeram durante 50 anos.

E para quem procura casa? Também não consegue encontrar um imóvel a preços acessíveis…

Sim. Mas as rendas são elevadas porque não há oferta. É um mercado estrangulado, em que há muitas casas vazias. É certo que as tais 720 mil que se fala naturalmente muitas estarão localizadas em zonas que para já não são utilizáveis. No distrito de Lisboa são 160 mil, só em Lisboa são 50 mil. Se houver medidas, se houver incentivos poderão ser colocados uma parte destes imóveis a uso. Por exemplo, em Lisboa se fossem para o mercado 10% dessas casas vazias já estaríamos a falar de cinco mil casas, o que resolvia os problemas de muitas pessoas. Não é possível esperar cinco anos por novas construções, não quer dizer que não se faça aqui e ali, mas a primeira medida passa por atacar os devolutos, a começar naturalmente pelos devolutos de propriedade pública. Essa tem de ser a primeira medida até para evitar toda esta conversa de demagogia da propriedade e do discurso de ficar sem ela. A grande questão é que os prédios foram construídos para se habitar não é para enfeitar as cidades. Para enfeitar as cidades temos os monumentos, as fontes, os jardins, etc. Os edifícios de habitação são para serem habitados. É preciso que o Governo faça finalmente alguma coisa para que esses imóveis possam ser utilizados. Em primeiro lugar, os edifícios públicos, em segundo lugar, os do setor social, fundações, IPSS que beneficiam de uma fiscalidade praticamente nula, depois as casas dos bancos, das seguradoras – para deixarem de ser ativos tóxicos e passarem a ser rentáveis – e só depois os particulares. Mas no caso dos particulares tem de ser analisado caso a caso. Uma coisa é um proprietário que tem 100 casas, outra é um com duas ou três. Não pode ser tudo tratado de igual porque isto não é tudo igual. É preciso saber se o Governo e as autarquias têm unhas para tocar a guitarra destas medidas todas. Mas isso é um problema dos gestores públicos que têm de saber se depois de as medidas serem adotadas as coisas funcionam. Espero que sim, porque a medida essencial depois disto tudo é a fiscalização. Se não há fiscalização depois as coisas voltam a funcionar mal.

Os proprietários falam em expropriação…

Não há expropriação nenhuma. Este programa do Mais Habitação não põe em causa a expropriação, mas tem de haver um incentivo à utilização e se o proprietário tem uma casa vazia é justo que a administração cavalgue no assunto e tente resolvê-lo. Há posse administrativa, há o arrendamento forçado, mas não está em causa o direito à propriedade, o que está em causa é compaginar o direito à propriedade com o direito à habitação. Isto é, o direito à propriedade não pode prevalecer sobre o direito à habitação, assim como o direito à habitação não pode prevalecer sobre o direito à propriedade. Tem de haver um equilíbrio, mas estou a falar nas cidades e nos seus edifícios.

Nomeadamente aqueles que são detidos por fundos de investimento?

São as chamadas casa banco. Foram compradas num processo de especulação imobiliária, em que foram compradas por um valor e vendidas logo a seguir por outro bem superior e assim sucessivamente. Processos esses que estiveram ligados a programas, como foram os vistos gold e os residentes não habituais. Não tenho nada contra os estrangeiros que venham para cá morar, agora a que propósito é que têm benefícios ficais que nós não temos? Isso não tem sentido nenhum.

E contribuiu para a especulação de preços…

Exatamente. Os vendedores de casas carregaram no preço, engordaram as comissões e enriqueceram e quem vive cá com salário mínimo ou médio ficou sem acesso às casas.

Como vê as afirmações, por exemplo, de que nem todos podem morar nas cidades e que terão de ir para a periferia…

Ir para a periferia não é novidade, porque nos anos 50/60, muitas pessoas foram empurradas para a periferia e foi dessa forma que nasceu a Amadora, Cacém, Almada, Loures, etc. Nessa altura, a baixa pombalina desertificou-se com o processo de centralização de serviços de bancos, seguradoras e serviços diversos. O problema é que nas periferias os problemas também já são bastante grandes, com preços altos, problemas de mobilidade e falta de serviços. É preciso que a cidade se reorganize e seja acolhedora para mais pessoas. A cidade não pode ser só para os ricos. A cidade vive de toda a gente, desde os mais ricos aos mais remediados.

O programa de rendas acessíveis ficou aquém das necessidades?

O programa de rendas acessíveis teve muito pouco êxito. Eventualmente ou foi porque foi lançado fora do tempo ou não foi suficientemente apelativo para a propriedade. Tenho ideia que só 300 apartamentos é que adotaram esse programa. A especulação é de tal ordem que os proprietários não acharam o programa atrativo.

Mas há também quem culpe o alojamento local por estarmos nesta situação…

A lei do turismo de 2008 já previa alojamento local só que não contemplava o alojamento em habitação, considerava os hostels, residenciais, etc., depois em 2014 foi alargado para o turismo em habitação, mas a própria lei Cristas de 2012 abriu espaço a esse tipo de utilização, ao considerar que não havia contrato mínimo e em que o máximo era de 30 anos. Naturalmente intensificou-se em 2014 com a alteração da lei do AL, em que assistimos a processos de expulsão de inquilinos, embora uma parte desse alojamento seja resultante de reabilitação de muitas casas. Não está quantificado quantos foram expulsos, o que é pena. Agora o mais interessante é que com este pacote apareceram muitos especialistas em habitação.

Ainda recentemente foi revelado que o número de despejos em 2022 ficou muito próximo do que se verificava em 2019, antes da pandemia e do travão à cessação de contratos e que em Lisboa até ultrapassou.

A maior parte não se deve a situações de incumprimento, não quer dizer que não haja um ou outro caso, mas foi mais por vontade dos senhorios em não dar continuidade aos contratos. Mas parece uma ação concertada porque o número aumentou repentinamente e poderá estar relacionado com a medida prevista de manter os contratos antigos em vigor e não transitarem para o NRAU. Iremos responder caso a caso e reclamar junto do Governo e da Assembleia da República. O que é que vai acontecer aos apartamentos que vão ficar vagos? Vão pedir quanto de renda? E em que estado estão as casas? Tudo isto é muito complicado. Mesmo com os contratos novos há muitos senhorios que não fazem obras e há a ideia do ‘não está bem mude-se’. Não são todos os proprietários, mas infelizmente há muitos, demasiados até. Por isso é que é preciso fiscalização, o arrendamento é uma atividade económica, é uma prestação de serviços de uns que têm casas e de outros que necessitam delas, mediante a realização de um contrato e o pagamento de uma renda. É a única atividade económica do nosso país que não é fiscalizada, todas as outras são reguladas e fiscalizadas, nesta cada um faz o que quer. Por isso é que dizemos há muito tempo que é preciso regular e fiscalizar o mercado de arrendamento.