Estamos em 2015, no quarto aniversário da Primavera Árabe e da Guerra da Síria. Vimos cair Ben Ali, Mubarak (e depois Morsi), Khadafi, Saleh. Vimos Sarkozy perder eleições e Obama está de saída da Casa Branca. E Assad permanece no poder. Como se explica esta resistência?
Há duas explicações. Uma externa, que é o facto de a Síria ser um entroncamento de interesses inconciliáveis, e essa falta de entendimento para derrubar o regime ou resolver uma guerra civil ou derrotar o jihadismo leva a que pelo menos uma faixa do território permaneça nas mãos do soberano. Como ele também tem importantes apoios internacionais, nomeadamente da Rússia e do Irão, e dado que os Estados Unidos inverteram uma espécie de política de mudança de regime ditatorial por casos de falhanço sucessivos na última década leva a que ele se mantenha no poder como resistente, embora seja um poder numa faixa territorial. Depois, na parte interna, a resistência dele deve-se à falta de credibilidade das oposições, à emergência de uma luta surda entre a al-Qaeda e o ISIS, e ele joga com essa questão de uma forma muito hábil, pondo todos no mesmo saco do terrorismo, fazendo com que isso se torne numa política de medo interna e para o exterior e dando a entender que ele é o garante de uma bolsa de resistência anti-terrorismo.
O Estado Islâmico tornou-se num seguro de vida para Assad?
Seguro de vida numa faixa territorial. Não se pode falar de uma Síria só. O que podemos falar é de uma Síria alauita, sendo que na minha opinião existem já pelo menos três Sírias – essa alauita, uma sunita que é uma grande mancha de jihadismo, de oposições, tribos, e depois espaçadamente a norte um Curdistão já autodenominado como estado independente. Toda esta história do Médio Oriente é reveladora das mutações constantes, e o livro acaba por acompanhar essas mutações. Estamos a falar do Médio Oriente a ser redesenhado, nações dentro das nossas supostas ideias de nação ou de Estado que estão a vir ao de cima porque a falta de institucionalismo na região acabou por revelar o tribalismo que existe, e o tribalismo substitui o poder central na sua ausência. E o pânico do Ocidente foi verificar que à queda de instituições ou de poderes fortes centrais não surgiram outros poderes institucionais. É substituído por tribalismo, por sectarismo, e portanto acaba por ser um mal menor manter esse poder central mesmo que este seja de difícil aceitação por violações dos direitos humanos. A frase com que termino o livro (A Síria em Pedaços, Tinta da China, 2015) acho que resume um bocadinho toda esta história dos últimos quatro anos entre a Argélia e o Afeganistão: é preferível um ditador a prazo do que um califa sem termo.
A declaração recente de Kerry, que admitiu que os Estados Unidos teriam de dialogar com Assad a prazo, é uma confissão de fracasso dessa estratégia de expansão democrática? É um primeiro passo para a aceitação de um déspota a prazo no caso da Síria?
Acho que Kerry só verbalizou uma política oficiosa dos Estados Unidos que tem um ano e meio e que resulta a meu ver da sensata decisão de não intervir após o ataque das armas químicas em Agosto de 2013, e de toda a colaboração de Assad na entrega das armas. Todo esse processo, muito rápido, acabou por legitimar outra vez Assad no cargo, e a política oficiosa norte-americana passou a ser a de aceitá-lo como um player. Não de o tornar numa persona non grata na equação da Síria. Ele tornou-se por um conjunto de razões – até as piores, como o uso de armas químicas – numa parte da eventual solução síria. A mim, John Kerry não surpreendeu. Aliás, validou parte da tese do meu livro, cujo último capítulo se chama ‘O nosso amigo Assad’, um bocado provocatoriamente. Ele acaba por validar, na semana de lançamento do livro, esse último capítulo. Agradeço-lhe profundamente (risos). A forma como ele o faz, quando se assinala o quarto aniversário da guerra, e numa altura em que os Estados Unidos e o Irão estão sentados à mesa, esse convite ao diálogo, é um sinal de que as negociações estão a correr bem para o Irão.
O desfecho das negociações sobre o nuclear com o Irão será positivo, apesar da sabotagem do Partido Republicano?
Acho que não correu bem ao Partido Republicano. Acho que os Estados Unidos percebem que o Irão é fundamental em todas as frentes do Médio Oriente. Não abriram mão da negociação directa, mesmo em altura eleitoral em Israel. A Administração Obama não cedeu à pressão de Netanyahu, à visita ao Congresso, que foi provocatória e que aconteceu em colaboração com as chefias republicanas, e portanto é um risco que a administração corre. Desde muito cedo fui defensor de negociações directas com o Irão. Todas as formas que foram encontradas durante os últimos 35 anos desde a queda do Xá falharam. As sanções só isolaram o Irão, e o Irão não só é fundamental em diversas frentes como tem uma sociedade que é muito jovem e que não é antagónica aos Estados Unidos, ao contrário do que as pessoas pensam. Há muito mais anti-americanismo talvez na Turquia do que no Irão, entre a juventude urbana de Teerão, sobretudo. Isso é uma mais-valia a aproveitar. Portanto eu vejo com muito agrado que não se diabolize o Irão, embora eu não nutra nenhuma simpatia pela orgânica do regime, pela teocracia que é. Mas apesar de tudo acho que há ali formas de aproveitar até uma clivagem que existe entre civis nacionalistas que estão muito presentes na Presidência e que muitas vezes estão em antagonismo com o Líder Supremo e o conselho teocrático que no fundo gere o país. Há uma tensão orgânica e só abrindo os regimes – tal como só trazendo a China para os nossos círculos – é que nós conseguimos perceber melhor o que lá se passa. Não é isolando. Claro que isso tem riscos no Médio Oriente, porque torna muito mais tensas e até amedronta a percepção saudita, egípcia, turca e israelita sobre o que é que é o papel dos Estados Unidos, sobre as alianças que têm com os Estados Unidos e até sobre o que é que vai acontecer ao programa nuclear iraniano, que não é nenhuma ameaça directa aos Estados Unidos, mas que é uma ameaça directa a um build up de corrida ao nuclear um pouco descontrolado na região, nomeadamente no Egipto e na Arábia Saudita.
Que influência terá a reeleição de Netanyahu nesta dinâmica negocial com o Irão e até na Guerra da Síria?
Tudo tem influência na região, por isso é que é complexo olhar para um país de forma compartimentada. Todos os processos eleitorais têm uma dinâmica interna e externa, ao contrário do que acontece aqui na Europa, que são muito centrados em questões nacionais. Percebemos que os Estados Unidos não abriram mão da negociação directa com o Irão, mesmo sob pressão israelita. Acho que apesar das previsões o discurso securitário de Netanyahu vingou. Ele acabou por canibalizar toda a direita, que desceu.
E esse discurso securitário, de medo, é verdadeiro? Haverá uma moderação de posições agora?
Depende de como a coligação se formar. O Kulanu, que teve dez deputados, vai ser fundamental. É moderado, liderado por um ex-Likud e teve um discurso muito centrado nas questões económicas, nos monopólios estatais, na electricidade, e não tanto em questões securitárias. É um partido centrista, e se tiver pastas chave eventualmente poderá moderar o Governo. Mas eu acho que o problema de Israel é o sistema eleitoral, o sistema político. A fragmentação partidária não ajuda a que os grandes partidos consigam ter uma agenda moderada, são sempre resgatados pelas franjas, e isso é muito evidente à direita, muito mais que à esquerda. Mas voltando ao Irão e a Israel, acho que o ISIS acaba por validar o papel do Irão. Os Estados Unidos aceitam-no porque não querem ter tropas no terreno e Obama não quer que a Síria seja o que o Iraque foi para Bush.
O Irão está então a tornar-se num proxy dos Estados Unidos no combate ao ISIS, ao contrário do que Thomas Friedman escreveu no New York Times, sugerindo que Washington deveria tolerar e ajudar o ISIS para impedir uma tomada da região pelo Irão?
Não partilho dessa diabolização do Irão, embora seja uma política muito arriscada do ponto de vista americano, porque haver um desfecho positivo no Iraque e na Síria torna praticamente o Irão na grande potência. O que não é uma novidade, mas oficializa essa realidade, e isso causa uma grande instabilidade na região, na Arábia Saudita, no Egipto, em Israel e na Turquia, e isso tem consequências para as alianças americanas. Eu não sei até que ponto é que Obama está a medir bem essa situação, sendo que parece que a prioridade é apenas a vitória sobre o Estado Islâmico e não o dia seguinte à vitória sobre o Estado Islâmico. Este é o primeiro ponto. O segundo ponto é se isto não é verdadeiramente uma estratégia americana e se isto não revela que os Estados Unidos estão numa fase pós-Médio Oriente, mais virados para si mesmo, pela revolução energética que têm.
Ou seja, esta ‘entrega’ do Médio Oriente por parte dos Estados Unidos ao Irão é voluntária e é a concretização de um desinvestimento de Washington na região?
Não tenho a certeza. Pode haver uma estratégia involuntária, fruto dos acontecimentos, pragmática, e pode haver também uma vontade própria. ‘Nós já tivemos problemas que cheguem na região, reconhecemos a nossa perda de influência decisiva como tivemos no passado, estamos vocacionados para uma área mais próxima como é o Atlântico e o Pacífico, mais estável, menos conflitual’. Admito que isso possa ser uma estratégia de longo prazo. Mas não estou certo, sobretudo que a Administração tenha isto tão pensado nestes termos. Acho que uma das lições a tirar destes anos de mandato de Obama é que ele privilegiou uma frente interna, de consolidação económica e financeira, de estancar o pânico da crise financeira de 2008, que acho que foi conseguido, e depois, na frente externa, sem uma grande estratégia, foi actuando perante os acontecimentos da melhor forma possível. Com o fardo de um passado recente, uma batata quente muito dispendiosa, muito descredibilizadora dos Estados Unidos, fruto de vários fracassos. Não é por acaso que ele não assume o fracasso líbio – não quer acrescentar aos fracassos do passado um fracasso próprio. Não da intervenção, mas do pós-intervenção. Não há muitos casos de sucesso pós-intervenção. Precisamos de casos de sucesso.
Há algum caso de sucesso saído da Primavera Árabe ou é uma sucessão de fracassos?
A Tunísia é um caso isolado de sucesso. Embora não esteja imune, como vimos agora, a casos de terrorismo.
Esse sucesso deve-se ao facto de ser um país homogéneo, pequeno, como escreve no livro.
E uma sociedade civil bastante forte, um papel das mulheres muito mais presente. Acho também que a aproximação ao Ocidente, através do turismo, abre um bocadinho as mentalidades. Mas não deixa também de ter o maior contingente estrangeiro no ISIS. Parece um paradoxo, não é?
Há quem diga por isso que o relativo sucesso da Tunísia também se deve ao facto de ter exportado os seus extremistas para a Síria.
Ou por isso ou por não ter radicalizado a sua política, frustrando os extremistas que ficaram à margem. Acho que esse paradoxo, da bolsa jihadista tunisina, tem um paralelo no jihadismo proveniente dos países europeus ricos. É interessante ver que não vem de países sob assistência financeira, ou numa grande crise económica.
Onde esse extremismo tem menos possibilidade de ser politicamente relevante, tende portanto a emigrar.
Está por estudar tudo isto. Uma das questões que levanto no livro é a nossa falta de estudo prévio de tudo o que acontece na nossa zona vizinha. Desde 1989, 1991, entrámos aqui numa espécie de egocentrismo triunfalista no Ocidente.
O fim da História.
O fim da História foi uma grande bebedeira colectiva, e nessa perspectiva nós menorizámos um pouco o que está a acontecer à nossa volta, e hoje em dia estamos a pagar o preço de não estudarmos, de não prevenirmos cenários menos positivos. Os próprios ministérios e os gabinetes dos primeiros-ministros não têm gente só para pensar nestes assuntos. Não recorrem, como deveriam recorrer, a institutos que têm gente para pensar nestes assuntos. Vão actuando na voragem dos acontecimentos e as decisões são muitas vezes tomadas fora do tempo, são impreparadas e erradas.
Sente isso actualmente, em Portugal?
Sinto muito. Não queria particularizar com Portugal, embora ache que Portugal não tem política externa sequer. Não tem pensamento estratégico nenhum. Actua numa certa comodidade. Está sempre à espera das opiniões dos parceiros europeus para ver em que lado pode actuar.
Não lidera.
Nunca lidera, não aproveita da melhor maneira as suas vantagens geográficas e de conhecimento de muitas realidades que outros europeus não conhecem. Podia ter um protagonismo maior e uma autonomia maior que nos redimensionasse. Mas não ponho a questão só em Portugal. Acho que é um problema europeu – e até americano – que é não pensar estrategicamente, digerir informação de forma mais cuidada. Acho que apesar de tudo os EUA estão mais à frente. No plano europeu era preciso uma ligação maior entre quem pensa e quem actua e decide.
Houvesse pensamento estratégico e teríamos evitado estas metástases da Primavera Árabe que são os atentados perpetrados na Europa por radicais com ligações à Síria? Ou a pressão migratória resultante de todos estes Estados falhados? Estamos a pagar o preço da nossa desatenção?
Estamos a pagar o preço disso, de políticas de integração falhadas… Não estou a dizer que a culpa é só do país de acolhimento, porque as comunidades também têm culpa disso, porque se ghettizam. Acho que há uma convergência de factores. Sobre essa falta de conhecimento, acho faz muita falta associar ao Ministério dos Negócios Estrangeiros ou mesmo ao gabinete do primeiro-ministro, que hoje em dia tem uma força muito grande na política externa, sobretudo na política europeia, um conselho estratégico que pudesse ter mandatos para lá das legislaturas e que agrupasse um conjunto de personalidades de várias gerações que pudessem pensar estes assuntos. Nos Estados Unidos têm isso. O Departamento de Estado tem um conselho estratégico com as grandes figuras da foreign policy community e que…
Que tem uma continuidade. Aqui temos gabinetes que vão sendo remodelados até durante as próprias legislaturas.
E que são inexperientes. Eu pensaria num conselho estratégico que pudesse pensar os interesses portugueses em primeiro lugar, nas várias geografias e latitudes, e que depois pensasse nas nossas alianças e qual o nosso papel nessas alianças que também podem ser actores e produtores de segurança.
Que entidades estão mais habilitadas para prestar esse apoio continuado ao Estado? O Instituto de Defesa Nacional? Os institutos associados às universidades?
O IDN tem um feito um papel muito interessante mas está muito condicionado ao facto de pertencer ao Ministério da Defesa. O Instituto Diplomático faz a formação dos novos diplomatas, mas talvez lhe falte… Acho que os institutos privados podem fazer esse papel, mas era preciso que houvesse também uma linguagem da academia ou de quem pensa a política internacional mais próximo das decisões, e que não estivesse refém da própria academia, da linguagem hermética. Acho que esse divórcio permanece. Era importante que os dois mundos passassem a conviver de outra maneira. Vou dar o exemplo do caso americano: nós temos gente que está nas universidades e que vai para os think tanks e para os gabinetes ministeriais e que volta para as universidades, que está numa circulação permanente. Aqui, um académico ir para um gabinete é quase um bicho raro, exótico. A academia não privilegia o contacto com a realidade. A verdade é esta. E os decisores políticos estão reféns de uma certa numenclatura partidária e de funcionalismo público que não tem tempo para pensar e que não tem background nestas matérias. É preciso aproximar estes mundos, que as decisões sejam melhores, que haja mais pensamento preventivo sobre estas questões. Aquilo que estamos a ver no comportamento russo era de certa maneira previsível. Aquilo que estamos a ver que é destapado pela queda de ditadores no Norte de África e no Médio Oriente também era previsível. O que estamos a assistir no Golfo da Guiné…
A nossa relação nervosa com Angola.
Há um conjunto de situações muito alargado que não trazem surpresa nenhuma, e vejo as reacções dos decisores reféns de uma certa surpresa e que são necessariamente reacções erradas. Verbalizam de uma forma mal conduzida, mal aconselhada. Pensar melhor todas estas matérias ajudava a que as decisões fossem melhores. O meu papel na comunicação, ou pelo menos o esforço que faço, é o de desmistificar os divórcios que possam existir entre a política, a academia, a estratégia e os leitores comuns. Aproximar estas linguagens e estes universos. Depois, todas as minhas ligações a institutos, quer aqui quer nos Estados Unidos e noutros países europeus, toda esta network de scholars e analistas que tem de ser trabalhada ao longo dos anos. Faço parte dela, sou chamado a participar. Mas a minha preocupação não é influenciar. É tornar estas questões e estes mundos mais próximos das nossas vidas. Ter alguma pedagogia. Tentar que a Síria não seja um assunto exótico, que seja um assunto presente nas nossas vidas. Perceber como é que a América Latina está também a emergir, a Ásia, a política americana… Identifico-me com esse lado intelectual da política, e não me compete a mim bater à porta de ninguém para dar conselhos. Tenho muitas coisas que quero fazer, nomeadamente ao nível da escrita e do meu papel público, de um espaço próprio, de uma autonomia de pensamento sem qualquer preconceito ou agendas mais ou menos obscuras. Só estou refém da minha liberdade e não abdico disso por nada. Apesar de tudo acho que tenho uma transversalidade de reconhecimento interpartidário que valida essa independência. Quer dizer, ninguém é independente nas suas opiniões, porque reflectem a sua posição, mas eu sou responsável pelas minhas opiniões e defendo-as, e acho que o livro acaba por ser um trabalho que reflecte isso. Nunca reescrevi uma opinião a posteriori.
Regressemos à Síria. Assad poderá permanecer no poder, ainda que forma transitória, após um processo de diálogo?
Eu nem sei quando é que acontecerá esse diálogo, porque acho que esta frente anti-ISIS vai ser longa. Não sei se há condições para, em paralelo a esse esforço, haver negociações políticas, ou se isso está a ser pensado para uma fase posterior. Acho que Assad é parte da equação nos dois cenários, e nesse ponto de vista é uma conquista pessoal dele.
Há alguma figura evidente que possa suceder a Assad?
Não tenho condições para dizer se há qualquer luta interna. Houve muitas cisões nas forças armadas, e por isso é que a força do Hezbollah e o apoio militar iraniano foram decisivos para colmatar essa fraqueza, mas ao nível político há muita coesão. E esta projecção internacional, este périplo de entrevistas que deu, e a RTP fez parte dele, faz parte dessa sedimentação do poder. Não me parece que faça nenhum sentido que depois destes quatro anos em que consegue manter uma franja do território sob a Casa Assad ele seja posto em causa.
E da parte da oposição não há nenhuma figura forte e consensual?
Há uma oposição que está unificada e legitimada, a Coligação Nacional Síria, e o vínculo internacional dessa coligação não foi quebrado. Ela é parte do processo político, a retomar-se esse processo. Mas mais uma vez não há credibilidade a 100% nem força a 100% para se entregar o poder a nenhuma oposição em nenhum país do Médio Oriente. E isso é que também leva a que no caso sírio se tenha sido bastante prudente ao travar – e Obama fê-lo – uma intervenção de derrube de regime depois do caso das armas químicas. Não havia condições para replicar a Líbia ou o Iraque na Síria porque há demasiados fogos à volta da Síria. Todos estes factores, todos estes quadros de guerra à volta da Síria levam a que ela seja irresolúvel a curto prazo. A Líbia foi de certa maneira um cenário em que convergiram interesses, houve uma resolução do Conselho de Segurança da ONU, evidentemente que foi extrapolada… Mas a Síria é tudo isso. É muito divergente externa e internamente e é por isso que ela é central no livro, porque dentro desta região alargada toda ela acaba por ser o protótipo de interesses inconciliáveis e de uma calamidade humanitária extrema.
Estamos a assistir à destruição do Estado-Nação sírio. Está a ser substituído pelas tais três Sírias ou na verdade é todo o Médio Oriente que está a ser dividido em dois – um xiita e um sunita?
A segunda situação é a causa da primeira.
Há uma guerra fria que leva à guerra síria?
Há uma guerra quente dentro do Islão. Aliás, aí está uma diferença estratégica entre a al-Qaeda e o ISIS. A al-Qaeda emergiu muito como anti-ocidental. Foi uma reacção muito mais contra os anos Clinton do que contra Bush, que estava lá há uns meses. Foi contra aquele triunfalismo, aquela quantidade de intervenções no exterior à volta da ideia da expansão democrática, que foi a grande estratégia da era clintoniana e de Blair também. O ISIS é muito mais anti-xiita, zarqawiniano, sectário, muito mais pelo redesenhar do Médio Oriente. E por isso é que os dois movimentos não convergem, e por isso é que destapam todo o tribalismo da região. O que acontecia antes era que um poder central abafava um puzzle interétnico aparentemente inconciliável, e quando este poder é posto em causa, tudo vem ao de cima. Vem primeiro ao de cima internamente, mas depois o que acontece é que todos estes players internacionais acabam por deitar ainda mais achas na fogueira do sectarismo, aproveitando o facto da Síria ter sido dominada por uma minoria alauita contra uma maioria sunita. O Qatar, a Arábia Saudita e a Turquia apoiaram um sunismo muitas vezes radical para pôr em causa uma liderança minoritária. No caso iraquiano isso também é evidente. Portanto, para além do puzzle interétnico há depois um patrocínio externo. Só que esse patrocínio no Médio Oriente nunca é limitado à região. Os europeus têm interesses e responsabilidades históricas, os americanos são uma potência no Médio Oriente como o são em qualquer continente, e depois há outros players que aparentemente não eram evidentes, como a Rússia ou a China, mas que também são importantes. No caso sírio, a Rússia é fundamental. No caso iraquiano, a China é absolutamente crucial porque é neste momento o maior comprador de petróleo. A grande questão em relação à China é como é que passa de uma potência surda em relação a estas questões que se desenrolam fora da sua zona de influência para uma situação em que passa a imiscuir nas questões de segurança internacional.
Por causa das necessidades energéticas. É o que se passa em África.
Em África, nas rotas marítimas, no combate à pirataria. Uma das grandes consequências desta situação no Médio Oriente é a emergência das rotas polares, do Árctico. Mais uma vez é um assunto aparentemente exótico, mas está tudo ligado. Eu estive no Alasca no ano passado e percebi perfeitamente como é que o Árctico é o próximo xadrez mais importante da política internacional. Todas as grandes potências estão lá na extracção de recursos. Pensa-se que 30% do petróleo e do gás desconhecido está lá. O investimento em picadores de gelo, nomeadamente de russos e chineses, é brutal. A rota polar comercial entre Pequim e Hamburgo tira 2.000 quilómetros à rota por baixo. Não é o ano todo, mas as alterações climáticas também ajudam a isso. O Árctico é the next big thing. Ainda há pouco tempo tive uma reunião à porta fechada com a senhora Federica Mogherini (Alta Representante da UE para Política Externa) e fiz-lhe ver essa dimensão estratégica para a União Europeia da política do Árctico e ela disse-me que era uma bandeira do seu mandato. Ela ia agora à Gronelândia.
Que não faz parte da União Europeia.
Não faz, mas Mogherini quer que a UE seja membro do Conselho do Árctico. Ela percebe que o Árctico é um playground que pode envolver muita tensão mas que é muito apetecível. A rota comercial chinesa, que vem pelo Suez até à Europa, para além de ser instável – a pirataria no Golfo de Adén, mesmo o Sinai que está tomado por terroristas – é muito mais cara e muito mais lenta que por cima. Tudo isto é fascinante e é preciso ver a grande fotografia, mas os europeus estão só a pensar no seu umbigo. Há um excesso de funcionalismo e de burocracia, e é preciso estar um pouco à frente do tempo. Só quem está à frente é que consegue pensar melhor os assuntos e produzir melhores decisões. Por isso é que os decisores precisam de se aproximar destes círculos de pensamento e estes círculos precisam de ter uma linguagem mais próxima dos decisores.
pedro.guerreiro@sol.pt