Nascido no Porto, na velha Rua das Musas, foi pelas ruas da cidade de Lisboa, para onde se mudou aos 4 anos, que José Gomes Ferreira (9 de Junho de 1900 – 8 de Fevereiro de 1985) deambulou, com impaciência e sobressalto, através das coisas e das gentes, tirando, como escritor, partido da mais desmesurada aventura como do mais irrisório dos casos, não estivesse o «poeta militante» («militante da poesia total»), como se intitulou, empenhado na dignificação de um quotidiano que não se cansou de reinventar, através de uma poética do olhar que capta e transfigura.
Da «realidade gelada» fez quadros humanos que extravasam das molduras do realismo, como fica claro no epílogo do conto «Post-scriptum sobre os segredos das cidades»: «Por exemplo: aquela caixeirita que deixa o jeito das mãos a adornar as montras e, todos os dias, rouba o sorriso das bocas de cera dos manequins … Ou aquele jardineiro que desenha, com a água da agulheta, caprichos de enfeites na alegria lúcidas das manhãs … E este varredor fabuloso de montes e montes de ouro em folhas pelas ruas … E os dedos da criada do primeiro andar a imitarem flores nas plantas dos vasos da varanda …»
Autor de uma poesia permanentemente situada perante a circunstância, José Gomes Ferreira definiu-se como «um misto de cavaleiro andante, profeta, jogral, vate, bardo, jornalista, comentador à guitarra de grandes e horríveis crimes». É o retrato compósito do artista enquanto homem do século XX que atravessou quase inteiramente. Da placa giratória da sua existência, assistiu, entre entusiasmos heróicos e desilusões dramáticas, à proclamação da nossa Primeira República, às duas guerras mundiais, à Revolução Russa, à Guerra Civil de Espanha, à Guerra Fria, ao nascimento, expansão e morte do fascismo.
Como sugere o subtítulo dos três grossos volumes que reúnem a sua obra poética – Poeta Militante, Viagem do Século XX em Mim –, também quase todo o século XX atravessa a sua vida e a sua obra, em poesia (do irreal quotidiano), e em prosa, multiplicada numa grande diversidade de géneros discursivos, fragmentários e íntimos, pretensamente ajustados ao fluxo volátil das horas e das impressões: da memória ao diário, passando pela crónica e pelo apontamento, como indiciam desde logo alguns títulos da sua tábua bibliográfica: A Memória das Palavras ou o Gosto de Falar de Mim (1965), Imitação dos Dias: Diário Inventado (1965), Intervenção Sonâmbula (crónica, 1977), Dias Comuns (diário, 1990, 1998 e 2000).
Licenciado em Direito, curso que conclui em 1924, o autor das Aventuras Maravilhosas de João Sem Medo (1963) viveu em litígio consigo mesmo, numa tensão entre a sua assumida militância poética, a solicitar-lhe a intervenção objectiva, o libelo contra as injustiças de um tempo opressivo, e a afirmação da sua individualidade, propensa ao sonho, quando não ao quase-delírio com que o eu-execrável insistia em sobrepor-se ao colectivo.
Talvez por isso tenha suspirado, com uma ironia e um sentido do absurdo que a sua obra tantas vezes convoca, por uma suspensão do tempo: «Ah! Se eu pudesse suicidar-me por seis meses». Compreende-se: Viver sempre também cansa – o título, aliás, da conhecida composição que relata o seu segundo nascimento, a sua aparição como poeta, em 1931, que abrirá o volume da sua estreia poética efectiva: Poesia – I (1948). Era já depois de ter exercido funções de cônsul de Portugal em Kristiansund, na Noruega, entre 1926 e 1930. E quase duas décadas depois de ter publicado os seus dois primeiros livros de poesia: Lírios do Monte (1918) e Longe (1921), ambos excluídos das várias reedições da sua poesia completa.
Ao período do «interregno norueguês», no qual se inscrevem os contos de Tempo Escandinavo (1969), seguiu-se o que, com ironia, designou por «tarefas da subarte e da subliteratura»: crónicas e historietas destinadas a pequenas publicações, tradução, sobretudo de legendas para filmes, colaborações em jornais e revistas, assinadas, as mais das vezes, com pseudónimos, tais como a Presença, a Seara Nova ou Gazeta Musical e de Todas as Artes. Num número desta última, revelou o nome do seu «mestre secreto»: Raul Brandão, em cuja obra bebeu o espanto com que acompanhou a descoberta do absurdo da existência.
José Gomes Ferreira deixou de si, para além da imagem de distraído congénito, a imagem de um escritor inconformado e de lucidez aturdida, permanentemente guiado por um ideal de justiça e pelo sonho revolucionário de um futuro de igualdade e dignidade para todos.