Alberto Pimenta, António Barahona, António Franco Alexandre, João Miguel Fernandes Jorge, Manuel Gusmão, Rui Nunes… são alguns dos nomes – sempre poucos, diga-se – que apetecia dizer, nomes de poetas antes de mais, portugueses por azar, que teriam mais a acrescentar à terrível amargura de se escrever nesta língua como se estivera morta, para serem escutados só tantos anos depois. Como se os seus mais desafiadores modos de encarar o mundo e a vida em português fossem o privilégio de uns danados, condenados a verem o seu nome apagado sempre que triunfa a cultura do assim-assim. O que não transtorna, mas simplesmente serve.
Qualquer destes nomes trouxe um mais ácido gosto à boca quando, da tarde para a noite desta quinta-feira, chegava o anúncio da atribuição do Prémio Camões a Manuel Alegre. O prémio, que pretende ser a mais importante consagração literária da língua portuguesa, desluzia-se nas mãos de uma figura inevitável da nossa vida pública, um poeta cuja fama persiste contra quem da poesia tira uma espécie de terror, e olha o mundo no pânico de o sentir tão desolado de qualquer sentido forte, dessa grande razão que sempre falta aos discursos medidos segundo o que caia bem ao gosto popular.
Na sua tão ajuizada perfídia, consta que Agustina Bessa-Luís disse certa vez que Manuel Alegre era «o maior dos nossos poetas assim-assim», e disse então tudo o que havia a dizer sobre a atitude com que o fóssil de Abril foi persistindo, à margem de qualquer juízo crítico mais lúcido e severo. Se é inegável o relevo que assumiu na linha da poesia de intervenção que soube exprimir o país amordaçado pela ditadura, após o 25 de Abril, ficou difícil descer do pedestal. E Alegre não soube livrar-se da voz de estátua, daquele tom sempre à espera do cinzel que lhe crave os versos nalguma fachada. Muitas das suas páginas não souberam desfazer-se da tentação de cair no mármore, e toda a urgência, todo o aviltamento se perdeu nas flores que, para durarem, trocam a vida pelo plástico.
O histórico socialista e ex-candidato à Presidência da República, que celebrou 81 anos em maio, teve os seus dois livros iniciais – Praça da Canção (1965) e O Canto e as Armas (1967) – apreendidos pela Censura, mas não foi isso o que lhes cortou o pio; pode até dizer-se que só serviu para lhes redobrar o fôlego. Alegre, então oficial miliciano em Angola, passara uns meses na cadeia de Luanda, em 1964, devido à sua actividade política, e viu um e outro livros serem investidos daquele espírito que faz das palavras atos, tornando-se autênticos manifestos, que circularam por todo o país, em exemplares salvos a tempo, e sobretudo em cópias dactilografadas, ou até manuscritas, sendo recitados e cantados em manifestações, nos círculos estudantis e em todo o tipo de iniciativas de oposição ao regime.
O Prémio Camões chega com um gosto forçado: Alegre é um poeta que, por muito que tenha buscado um permanente diálogo com a lírica e épica camonianas, delas reteve menos a capacidade de invenção e o rapto expressivo a partir de influências variadíssimas, para ficar sobretudo abraçada aos ossos, com um gosto de naftalina enquanto canta um país emboscado nos seus próprios mitos, na exaltação de um passado que há séculos já lhe serve mais de ilusão ou antidepressivo face a um futuro que, pegando na mão do mundo, tem cada vez mais dificuldade em apontar com o dedo onde fica esse triste perfil voltado sobre o mar.
Manuel Alegre teve o faro político para nunca abdicar da fama de poeta que tão pouco proveito trouxe à língua de Camões. Vestiu a aura, fingindo ignorar como esta continua a ser «a pátria onde Camões morreu de fome e onde todos enchem a barriga de Camões» (Almada Negreiros). Não morrerá na penúria como aquele, mas havendo-se com o consolo de não ter realizado as suas ambições políticas, esperando da posteridade que venha a ressarci-lo dessa injustiça. E assim, de algum modo, se terá convencido que também pagou o preço da ousadia. Não teve tudo, mas teve o Camões, e reagiu «com alegria mas também com serenidade» porque afinal: «É natural que me atribuam este prémio. Até podia ter sido mais cedo». E é verdade que podia, podia muito bem ter-lhe sido atribuído em 2011, em vez de ter ido para Manuel António Pina, que não sendo um poeta de primeira grandeza sempre foi muito melhor poeta que Alegre.
Manuel António Pina podia ter morrido em 2012 ainda mais apagado, como morreu na semana passada Armando Silva Carvalho, sem que nem um jornal deste país usasse a honra de uma despedida na capa. Alegre podia ter-se tornado já então o mais fraco escritor português distinguido pelo Prémio Camões. Podia já então ter sido alvo da chacota de todos os que sabem que a poesia não serve de consolo para outras ambições frustradas. E sabem também que a pouca justiça que a eternidade venha a fazer, não terá contemplações com as alegrias que se confundem com os últimos estertores de Abril.
Adenda: Paula Morão, ensaísta e académica portuguesa que integrou o júri do Prémio Camões e afirmou que a escolha de Manuel Alegre foi «unânime e rápida», fez parte da Comissão de Honra e da Comissão Política Nacional dele na sua candidatura às presidenciais em 2011.