Alberto Manguel tinha seis anos quando viu no Palácio dos Doges, em Veneza, uma pintura de uma batalha que o impressionou profundamente. «Ainda hoje me aparece em sonhos», revela-nos. Terá começado aí uma longa e íntima relação com a arte e os seus mistérios. Mas ainda em criança viveria outra experiência marcante. «Tinha nove ou dez anos, e uma tia, que era pintora, convidou-me para o seu ateliê para ver onde trabalhava. Era verão em Buenos Aires, quente e húmido. A pequena divisão estava fresca e cheirava maravilhosamente a terebintina e óleo;_as telas arrumadas, encostadas umas às outras, pareceram-me livros deformados […]. Numa estante baixa encontravam-se grandes volumes de reproduções a cores, a maioria publicada pelo grupo suíço Skira, que para a minha tia era sinónimo de excelência. Tirou o volume dedicado a Van Gogh, sentou-me num banquinho e pousou o livro nos meus joelhos».
Os livros, sempre os livros. Manguel, que diz ter aprendido a ler logo aos três anos e que ao longo da vida reuniu uma biblioteca com dezenas de milhares de volumes, não é capaz de viver sem eles. Por isso, mesmo quando se fala de arte, o seu paradigma é o da leitura._Em Ler Imagens, recentemente publicado em Portugal pelas Edições 70, propõe uma abordagem a pinturas e fotografias como se fossem textos. Para isso, foi buscar algumas das suas imagens favoritas e através delas conta-nos histórias extraordinárias, como a dos Gonsalvus, família do século XVI_que sofria de hipertricose – uma doença congénita que cobre de pelos o corpo todo, inclusive a cara e as mãos, também conhecida como síndrome do homem-lobo – e que passou pelas cortes de Henrique II, Rei de França, e do «melancólico imperador Rudolfo II, que, enclausurado no seu palácio em Praga, reunira à sua volta muitos dos mais importantes artistas e eruditos do seu tempo para que lhe trouxessem novidades do mundo exterior».
A erudição de Manguel é prodigiosa, por isso as suas incursões pelo mundo da arte assemelham-se a labirintos que a todo o momento nos reservam surpresas – e nunca se sabe onde podem levar-nos.
«Por muito que goste de ler palavras, adoro ler imagens e gosto de encontrar histórias explícita ou implicitamente entretecidas em todos os tipos de obra de arte», confessa-nos nas primeiras linhas de Ler Imagens. Foi isso que tentou fazer ao longo de doze capítulos, onde nos propõe uma espécie de visita guiada por lugares imprevistos.
Não estava à espera que, num livro em que se propõe a ler imagens como se lê um texto, tenha decidido começar por uma pintura abstrata. Isso foi uma espécie de desafio que colocou a si próprio: tentar ler uma imagem que, por definição, se recusa a ser lida?
Uma imagem que representa alguma coisa obviamente está a pedir para ser lida. Eu queria tentar perceber se uma imagem que explicitamente não quer representar nada também o pode ser. A minha conclusão é que não pode. Nós abordamos as imagens (artificiais ou naturais) com uma tal bagagem de impulsos interpretativos que um olhar neutro é impossível. E o que veríamos se não trouxéssemos essa bagagem? É como se perguntássemos o que podemos pensar fora dos nossos pensamentos ou o que conseguimos saborear se não tivermos língua.
Falando ainda de pintura abstrata: acha que podemos relacionar o seu aparecimento com as desilusões, o ceticismo, a falta de fé (não apenas religiosa, mas também na beleza ou na bondade) que marcam a história do século XX?
Essa foi certamente a intenção [dos criadores de pintura abstrata]: resgatar as imagens do impulso narrativo, burguês, religioso ou outro. A primeira sugestão desta ideia que consigo encontrar aparece em Museu, do Cardeal Borromeu [1538-1584], em que, falando de Ticiano, ele nota que o pintor atingiu «um efeito impressionista» não da maneira laboriosa dos artistas visuais do tempo do Cardeal mas através da «combinação dos materiais em bruto, incluindo o campo pictórico, o verniz, a tela, e certas cores naturais»: ou seja, não a representação, mas a impressão abstrata. Talvez Bergotte, a personagem de Proust em A Prisioneira [quinto volume do romance em Busca do Tempo Perdido], tenha sido o primeiro a apreciar uma secção abstrata de cor por si, o «pequeno pedaço de parede amarela» na Vista de Delft de Vermeer que era «uma beleza que se basta a si mesma».
Muitos historiadores da arte insistem que a obra contém em si as respostas para todas as perguntas e por isso rejeitam aquilo a que chamam a ‘petite histoire’, a anedota histórica. O seu livro conta-nos muitos episódios curiosos, como aquele em que um amigo de Cézanne é acometido por uma violenta diarreia, e o pintor dá-lhe uma das suas mais belas aguarelas para se limpar. Há quem ache estes episódios triviais ou meras distrações. Acredita, pelo contrário, que eles podem ajudar a iluminar a obra ou a personalidade de um artista?
Acredito que todas as artes devem ser anónimas: que uma imagem, texto ou trecho de música devem valer por si, desembaraçados das datas e dos nomes dos autores, entrando num diálogo a sós connosco, sem ninguém a espiar ou a bisbilhotar por perto. Esse desejo não é possível de realizar. Nunca chegamos a uma obra de arte num estado virgem. As nossas circunstâncias históricas e pessoais, as fofocas culturais, modas e erudição contaminam a nossa relação com a arte. Nunca há uma ‘primeira vez’. Quando abrimos o nosso primeiro D. Quixote já levamos connosco a imagem do cavaleiro e do seu escudeiro; quando olhamos para uma imagem já temos conhecimentos convencionais de forma, cor e conteúdo. Contar essas anedotas pode não necessariamente iluminar a nossa visão da imagem, mas ajuda-nos pelo menos a termos consciência dos nossos preconceitos.
(…)
Depois de décadas a viver no estrangeiro [Canadá, França, Estados Unidos], regressou à Argentina para assumir o cargo de diretor da Biblioteca Nacional de Buenos Aires. No entanto, deixou a direção da Biblioteca em 2018. Acha que escolheu uma boa altura para regressar ao país onde nasceu?
O tempo o dirá. Não me parece que possamos viver sempre a pensar ‘será este o momento certo?’. Se assim fosse não daríamos um passo nem fazíamos nada. Como podemos ter a certeza? A minha vida tem sido guiada pelo acaso, e não tenho ideia de por que motivo faço o que faço. Neste momento, vejo o declínio e queda do Império Americano, revelando despudoradamente os seus preconceitos subcutâneos mais odiosos. Estou a pensar na possibilidade de deixar Nova Iorque e ir viver para Portugal (se Portugal me quiser) porque o acaso me colocou no caminho pessoas maravilhosas em Portugal que se tornaram amigos muito queridos. Mas será este o momento certo? Não tenho assim tantos anos para fazer mudanças, por isso espero que, seja qual for a decisão que tomar, não venha a arrepender-me dela, porque aí já será demasiado tarde para voltar atrás.
Já deu alguns passos para se mudar para Portugal, como procurar uma casa para viver?
A mudança para Portugal é algo em que estou a pensar, vendo a degradação dos Estados Unidos, mas ainda nada está decidido.
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