Passaram vinte anos desde que António Guterres se demitiu de primeiro-ministro para fugir ao «pântano político», conhecidos os resultados das autárquicas, em dezembro de 2001.
O pântano permaneceu, mas António Costa não imitou Guterres na noite eleitoral em que o PS perdeu Lisboa e Fernando Medina apareceu desfigurado pela madrugada, sem conseguir disfarçar o que lhe ia na alma.
Num ápice, Medina – o vencedor unânime das sondagens na véspera –, perdeu a liderança da Câmara, e, muito provavelmente, a sucessão de Costa e a ambição de ganhar o país.
Foi um pesado desaire para quem respirava arrogância no único debate televisivo, frente-a-frente, com Carlos Moedas, depois de enxamear a cidade de ciclovias inúteis e de ‘dar corda’ a um partido residual, tratando-o como parceiro privilegiado.
Mal desperto do pesadelo, Medina ainda ameaçou com a maioria de esquerda da vereação recém-eleita, somados os lugares do PS aos do PCP e do Bloco. Fraco consolo, embora tenha sido um ‘aviso à navegação’ e aos árduos trabalhos que esperam Moedas, quando ‘arregaçar as mangas’ e se sentar na cadeira da presidência, alcançada com mérito pessoal e não pouca coragem.
Moedas não defrontou apenas Medina. Defrontou todo um sistema montado, bem oleado e ‘armadilhado’ pelo PS, que se entreteve a instrumentalizar a pandemia e a ‘bazuca’ dos dinheiros de Bruxelas, subvertendo a campanha eleitoral com um foguetório de promessas.
Não há, de facto, memória de se ter assistido ao envolvimento de um primeiro-ministro com a amplitude e a confusão de papéis que se verificou em António Costa.
‘Camuflado’ de secretário-geral do PS, Costa fez-se eco e portador em cada comício dos milhões da Europa para distribuir em benefício das ‘suas’ autarquias, replicado pelos próprios candidatos socialistas, que não se inibiram de exibir as supostas vantagens da sua proximidade ao poder. Um abuso descarado que passou ao lado da CNE.
Não faltou sequer em campanha a ministra da Saúde, Marta Temido – a nova ‘coqueluche’ da agremiação –, a debitar propaganda avulsa, com absoluto despudor, enquanto outro ministro, Pedro Nuno Santos, ‘fazia pela vida’, a testar o seu peso político. Sem esperar, saiu-lhe o ‘vigésimo premiado’, na lotaria do partido para sucessor de Costa, ao ver derrotado um dos principais estorvos às suas ambições.
E, apesar de ‘andar às aranhas’ com a TAP e a CP, à custa do contribuinte, já se mostrou «muito preocupado» com o programa de Moedas, para a habitação e mobilidade, algo que passou ‘em branco’ com Medina, que tornou a circulação na cidade num caos e cumpriu cerca de 15% do programa de casas com renda acessível.
A‘venezuelização’ do regime sofreu um abalo, embora Costa possa recompor-se e mascarar o revés em Lisboa com o número de autarcas eleitos. O ‘albergue’ socialista tem uma grande elasticidade.
Se o PS pode gabar-se de ter ‘salvo a honra do convento’ ao sair vencedor das autárquicas no conjunto nacional, já à sua esquerda o PCP confirmou o declínio em que se afunda há vários anos e o Bloco a sua irrelevância, fora dos principais perímetros urbanos.
À direita, o Chega e o IL também não podem festejar, enquanto o PSD e o CDS passaram na prova de resistência, com os respetivos líderes a ganharem força para contrariar a contestação interna.
Rui Rio atirou-se às sondagens como ‘gato a bofe’ e aos comentadores encartados não menos. Mas não está a ser agradecido. Foi graças à fasquia ter sido colocada tão baixo que o PSD surpreendeu com a vitória de Moedas, deixando Medina de rastos.
Ao contrário de Medina, a quem os media raramente perguntaram pelo programa e pelas promessas esquecidas, Moedas pode ter a certeza de que o seu programa será regularmente escrutinado, e explorado, como já se viu com Pedro Nuno Santos, que se apressou a abrir as hostilidades.
Convirá que Moedas não se iluda. E embora precise de lançar ‘pontes’ à esquerda para governar – e conheça bem o comunista João Ferreira, de Estrasburgo e Bruxelas – é fundamental que não se distraia nem embarque em ‘cantos de sereia’.
Perante as várias histórias que circulam, as dívidas e as suspeitas acumuladas, o novo presidente da CML bem faria se determinasse, como primeiro passo, uma auditoria independente ao Município, envolvendo, designadamente, a toda poderosa Direção de Planeamento, Urbanismo, Património e Obras Municipais, titulada durante mais de uma década por Manuel Salgado, já constituído arguido.
Se Moedas o não fizer para poupar o seu antecessor a incómodos, corre o risco de ser posto um dia no pelourinho por aquilo que não fez.
Na ressaca das autárquicas, Belém já antevê um «novo ciclo político». Oxalá o incorrigível ‘comentador’ tenha razão e que o êxito inesperado de Moedas não seja apenas uma contrariedade passageira na hegemonia socialista.