O Presidente da República promulgou esta semana o diploma que simplifica as regras da contratação pública, apesar de falar em riscos. «A presente alteração legislativa levantou objeções, designadamente em matéria de transparência, de livre concorrência e de eventual concentração excessiva de obras, ao Tribunal de Contas e à Associação Nacional de Municípios», diz Marcelo Rebelo de Sousa numa nota publicada no site da Presidência da República, acrescentando que, no entanto, promulgou o diploma «sem deixar de sublinhar os riscos decorrentes deste novo regime, olhando ao relativo deslizar da execução e aos prazos limitados previstos, parecendo indispensável adotar medidas excecionais para tentar recuperar o tempo transcorrido e permitir a utilização das ajudas europeias, não querendo criar dificuldades ou outras justificações, tendo, antes em vista, atingir objetivos fundamentais para o país»
O diploma tem dado que falar e, se já em 2020 o Tribunal de Contas arrasou o documento, agora voltou a fazê-lo. Em parecer a que o Nascer do SOL teve acesso, o organismo liderado por José Tavares recorda que «pese embora aquilo que é considerado, no preâmbulo do diploma em apreciação, como a criação de ‘alguns requisitos próprios de acesso ao regime’, não podemos deixar de manter todas as objeções à criação deste regime especial que passa de exceção a regra, como já se assinalava no parecer de 20.09.2020 desta Comissão Permanente, objeções agora reforçadas».
Assim, o TdC reafirma as reservas levantadas há dois anos, considerando que as críticas levantadas em 2020 continuam a ser pertinente agora. «Esta opção legislativa altera um paradigma consolidado no regime jurídico de formação de contratos de empreitadas de obras públicas segundo o qual as fases de conceção e de execução de uma obra são fases distintas do processo construtivo, a cargo de entidades diferenciadas (o projeto, aos projetistas; a obra, aos construtores)», diz o parecer, que acrescenta também que apenas em obras de elevada complexidade técnica e absolutamente inovadoras tal possibilidade era permitida por lei.
E acrescenta: «Agora, pretende transformar-se a exceção em regra, o que – podendo representar uma simplificação do procedimento (uma vez que as entidades adjudicantes deixam de ter a responsabilidade de adjudicar previamente o projeto de obra a uma determinada empresa de projeto) – representa vários riscos e perigos».
Dos projetistas para os empreiteiros
Entre esses riscos e perigos, o TdC diz que altera o mercado do projeto de obra pública, «que passa da alçada dos projetistas (arquitetos e engenheiros) para a alçada dos próprios empreiteiros».
Mas não só. Diz ainda que «limita a concorrência, privilegiando as entidades de maior dimensão e capacidade técnica e financeira em detrimento das de menor dimensão (o que se afigura contraditório com o desiderato invocado no preâmbulo, de facilitar o acesso ao mercado das micro, pequenas e médias empresas), uma vez que, ou por não terem nos seus quadros profissionais qualificados para a elaboração desses projetos e/ou por não terem a capacidade financeira para contratar esses serviços» estas empresas «vêm significativamente restringido o seu acesso ao mercado por não terem a mesma além da proposta de empreitada», além de que condiciona «e dificulta a avaliação das propostas (conceções diferentes têm necessariamente preços diferentes)».
Diz ainda o TdC que a lei vai aumentar as possibilidades de «conluio na contratação pública e distorção da concorrência». «Em suma, representa uma medida potenciadora de práticas de corrupção e infrações conexas», atira.
Para a entidade, estes riscos justificam «a imposição de pressupostos para a utilização da modalidade de conceção construção e a respetiva justificação e fundamentação», acrescentando que «não se compreende a coexistência de um regime restritivo».
Muito crítica desta lei é também a Ordem dos Arquitetos (OA) que, ao Nascer do SOL, diz acompanhar a posição do Tribunal de Contas, «que, na prática, mantém os alertas de 2020 para o risco de corrupção, para a alteração do mercado da obra pública, que passa da alçada dos projetistas para a dos empreiteiros, e para a limitação da concorrência, com o privilégio a cair do lado das grandes construtoras».
O presidente do Conselho Diretivo Nacional da Ordem dos Arquitetos, Gonçalo Byrne, avança ainda que a «autonomia do projeto é a melhor forma de garantir o interesse público e prevenir o risco da corrupção», lembrando que esta é «também a posição dos demais projetistas e das associações das empresas de construção portuguesas, que também não têm reconhecido no modelo, que agora se propõe banalizar, qualquer mais-valia, nem para o setor, nem para a qualidade da obra pública e o interesse dos cidadãos».
Ao Nascer do SOL, Gonçalo Byrne acrescenta que a «conceção-construção foi um modelo aplicado nas PPP, e o Tribunal de Contas também tem dado nota dos resultados: obras mais caras, de pior qualidade e mais litigiosidade. Litigiosidade que é discutida em arbitragens privadas, ad hoc, onde o resultado é uma condenação sistemática do estado em milhões».
Mas lembra, no entanto, que neste momento é importante conhecer a redação do Decreto-Lei aprovada «e verificar se a mesma, de alguma forma, deu resposta a estas preocupações. Caso contrário, a quem serve esta solução se quem projeta, quem constrói e quem fiscaliza a rejeita?», questiona, deixando outra questão: «Vivemos tempos complexos. Preocupantes. Criam-se problemas para aparentar resolver problemas. A avançar dessa forma, obra feita, que país teremos?».
Recorde-se que o documento agora promulgado conta com algumas alterações que o Governo justifica com a necessidade de acelerar investimentos. Se esta alteração vale ou não a pena, o TdC explica e diz que a criação de exceções «acaba por criar dois regimes de contratação pública e transmitir uma mensagem negativa» que «é menos relevante assegurar uma concorrência efetiva e acautelar os melhores resultados financeiros». Assim, é claro: «Não podemos concordar com a solução proposta», diz.
Novos casos
A verdade é que a promulgação da nova lei da contratação pública coincide, no tempo, com as notícias sobre novos casos em investigação pelo Ministério Público e que levantam suspeitas sobre adjudicações diretas feitas por autarcas (como o socialista Orlando Alves, de Montalegre) ou Paulo Vistas e Isaltino Morais (Oeiras – ver texto nesta página) ou o ex-autarca de Caminha recém-nomeado por António Costa secretário de Estado Adjunto do primeiro-ministro, Miguel Alves.