‘Esta pressa de privatizar é puramente eleitoralista’

Pedro Castro diz ter ficado desiludido com o relatório da comissão de inquérito à TAP, apesar de já estar preparado. E defende que não se deve vender a TAP à pressa. Sobre o novo aeroporto lança críticas e é claro: ‘PS e PSD já tiveram tempo de preparação suficiente para encontrar uma solução que satisfaça…

Daniela Soares Ferreira e Sónia Peres Pinto

Ficou surpreendido com o relatório da comissão de inquérito à TAP?

Fiquei desiludido mas, ao mesmo tempo, estava preparado porque se trata de uma Justiça parlamentar e de uma Justiça partidária. Ou seja, estamos perante um caso que comparei inicialmente a um TAPgate, ao Watergate que foi resolvido em justiça. O caminho do tribunal leva a uma sentença e essa sentença é bastante neutra e objetiva perante os factos e as várias versões que são apresentadas. Nenhum tema fica de fora quando se trata de um assunto de Justiça em tribunal. Esta Justiça parlamentar e partidária corresponde àquilo que temos, em que temos um sistema judicial que funciona mal e é natural que este tenha sido o recurso corta-mato. Mas não deixa de ser muito limitado em termos dos resultados que se podem obter. A minha expectativa estava controlada, mas não impede a desilusão. 

Ficou com a sensação que houve uma tentativa de ‘branquear’ a imagem do Governo e de Pedro Nuno Santos? E apostou mais nos casos e casinhos, como o episódio do roubo do computador, quem chamou o SIS… 

Acho que esse é um ‘casão’, merecia uma comissão à parte. Isso é uma interferência inadmissível num Estado de Direito de utilizar os Serviços de Informação como substituto da Polícia e imaginar o que é ser um cidadão particular e estar naquelas circunstâncias. É algo que, numa circunstância diferente, teria levado o Governo a cair. 

A relatora da comissão de inquérito disse que ia passar para as mãos da Justiça… 

Claro, isso parece-me justo e correto e foi aquele trâmite que estávamos a falar. Infelizmente, o sistema judicial português não tem um funcionamento rápido. O Watergate ficou resolvido em dois anos, isto não será resolvido nem em dois e veremos se haverá uma acusação formal. No entanto, há consequências políticas que se poderiam ter retirado imediatamente. 

Disse que poderia ter levado à queda do Governo. Não caiu porque o Presidente da República segurou… 

Estamos perante os poderes do Presidente da República e como é que a opinião pública o iria julgar em relação a isso. Creio que também está numa situação difícil para ele próprio gerir. Volto a dizer que é uma Justiça parlamentar e partidária, ou seja, quer fazer-se justiça, mas não muito. Poucochinho. 

Christine Ourmières-Widener foi apresentada por Pedro Nuno Santos como uma das melhores CEO para liderar a TAP. Essa expectativa foi defraudada? Soube-se que quem mandava era o ministro…

Um Governo tem essa capacidade de fazer propaganda e de chamar às coisas o que quer. Chama comissão técnica independente, chama caravelas dos ares, são tudo palavras que, na verdade, depois não têm correspondência prática. Preferia que a adjetivação fosse ou bem calculada ou dada por mérito. Não aceito nenhuma dessas adjetivações, nem que era uma excelente CEO. Aliás, o que se conta é que foi a escolha número cinco ou seis. 

E que já tinha falido empresas de aviação…

Também é necessário CEOs que fechem empresas. Isso também é um mérito, mas ela própria também se colocou na posição de que era só engenheira e isso não corresponde ao papel de um CEO. Quando somos CEO de uma empresa e de uma empresa internacional tem de se respeitar o direito comercial, que é muito igual em todos os países. O mesmo acontece com o modo de funcionamento de assembleias de conselho de administração e a forma como se vota. A questão de se proteger constantemente e dizer ‘sou francesa, não conheço as leis portuguesas, nem tenho de conhecer porque sou engenheira’ não faz sentido e revela uma pessoa altamente inapta para o cargo.

Mas no caso de saída de Alexandra Reis diz que recorreu a um escritório de advogados e foi aconselhada para aquele desfecho…

Não assumindo ela, assumiu o Governo por ela. Isso está claro para mim. E não estou a julgá-la como engenheira. Era CEO, tomava decisões. Aconselhar-se mal ou bem é um problema dela. Se tiver um acidente de carro vai culpar o seu instrutor? O que quero dizer com isto é quando a pessoa assume este papel, assume-o com todas as consequências que daí advêm. Já tivemos casos de CEOs ou ministros que se demitiram de cargos não por coisas que causaram diretamente, mas porque assumiram a consequência de um ato ou de uma omissão, ou de um alerta, ou por algo que deveriam ter agido de forma diferente. No caso de Alexandra Reis também percebemos que não houve uma deliberação do conselho de administração sobre a sua exoneração. Isto é o básico do funcionamento de um conselho de administração. 

Percebeu-se que houve incompatibilidade entre as duas… 

Resolveu de uma maneira que não tem nada a ver com o facto de ser engenheira ou não. Esse não é o funcionamento de uma companhia que tem um CEO e um presidente do conselho de administração. Na altura, ainda tínhamos uma divisão: um presidente do conselho de administração e um CEO. Temos aqui dois órgãos. Neste momento, Luís Rodrigues é CEO e presidente do conselho de administração. Claro que alguém que estuda Direito se calhar tem uma intuição melhor para isto. Mas quem estuda Direito se calhar não tem intuição para a engenharia aeronáutica e tem de ter se for CEO de uma companhia aérea ou, pelo menos, tem de passar a ter. 

Mas um despedimento em público poderá custar uma indemnização aos cofres do Estado…

Não sei. Mais uma vez estamos perante um caso de justiça e vai ter de ser feita na Justiça portuguesa. Quando Portugal decide dar 3,2 mil milhões a uma companhia aérea em vez de investir, por exemplo, no sistema judicial, significa que tem um sistema judicial que funciona mal. Creio que a ex-CEO vai senti-lo na pele, porque este tipo de processos são longuíssimos. Recordo o processo da Air Atlantis que em 1993 fez um despedimento coletivo considerado ilegal. Foi até ao Tribunal de Justiça Europeu, correu as capelinhas todas e ainda não foi executado. O Estado português, na altura, foi condenado e ainda hoje os trabalhadores da Air Atlantis não têm a execução dessa sentença.

O que acha do novo CEO? Concorda com este modelo ou deveria haver uma separação de poderes? 

Em termos jurídicos, os dois modelos existem. Um é o chamado modelo americano, outro é o chamado modelo inglês. Em ambos os casos existem inconvenientes, existem benefícios, mas não vejo aqui nenhuma trapalhada. Acho que ficou claro com os episódios anteriores que o problema não é tanto o modelo, mas sim as pessoas que ocupam esses cargos. Ficámos com a noção que havia um presidente do conselho de administração muito afastado da empresa. E se quisermos comparar Miguel Frasquilho – que desempenhou este cargo anteriormente – e Manuel Beja, verificamos que houve uma grande diferença. Frasquilho era uma pessoa bastante conhecedora, que se apresentava. Não sei se isso é função de um presidente do conselho de administração, mas pelo menos, há aí uma diferença e a acusação que é feita a Manuel Beja é que nunca ninguém o viu. A questão não é tanto o modelo, mas as pessoas que ocupam. 

A recuperação da SATA vai estar associada ao novo CEO. Acha que ele consegue replicar esse exemplo na TAP? Estamos a falar de empresas com dimensões completamente diferentes…

É, mas ao mesmo tempo, com problemas muito semelhantes: um Governo muito intervencionista, sindicatos muito fortes, os mesmos com quem também Luís Rodrigues teve de se sentar e negociar. Para já, assistimos a uma quebra, viemos de um momento de caos jurídico, de um caos social e laboral na TAP com a administração anterior e dificilmente isto poderia ter continuado. A existência deste corte é fundamental até para as pessoas ficarem com a ideia do ‘vamos guardar o machado de guerra’, vamos olhar para a frente, vamos tentar entender-nos bem com esta administração e ver o que é que é possível fazer. Acho que a nova administração também veio com este espírito e veio também com uma vantagem, porque depois de termos visto o que é que o Governo e a forma como o Governo intervencionou na TAP durante toda essa administração, não vai ousar fazer o mesmo com a nova. 

Mas estamos perante dois ministros diferentes… 

João Galamba está muito mais fragilizado do que Pedro Nuno Santos. Galamba não tem tolerância de erro. A Pedro Nuno Santos foram tolerados vários erros e até despachos que foram revogados, uma série de coisas que se calhar noutra circunstância teriam feito cair outro tipo de ministro. João Galamba não tem esse jogo de cintura e creio que isso corre a favor da direção da TAP. É uma administração profissional, porque não veio por obra do Espírito Santo, veio por mérito. Na verdade, o que sentimos agora é que há uma vontade muito grande de neutralizar politicamente a TAP.

Acha que os sindicatos vão dar alguma tranquilidade à TAP? 

O sindicato dos pilotos alguns dias depois de Luís Rodrigues ter assumido o cargo colocou um pré-aviso de greve que foi prontamente retirado porque percebeu que o que faltava era o tal carimbo do Ministério das Finanças (MF). Isto foi mais uma crítica a esta dupla tutela em que, aparentemente, o Ministério das Infraestruturas (MI) decide, mas depois o MF tarda em executar a decisão e quem tem o dinheiro é o MF. Acho que foi o último grito a dizer ‘não se metam mais ou não metam mais a complicação política na gestão da gestão de uma empresa como a TAP’. O que me leva a questionar é como é que as outras empresas que não tiveram esta ribalta da TAP são geridas. Espero que tenha posto os portugueses a pensar que o Estado é um mau empregador. Acho que já sabíamos isto em relação ao SNS, em relação aos professores, em relação a vários setores, mas este é mais um que se junta a isso de uma forma muito exposta, mostrando que é um mau gestor. Claramente quando diz que vai salvar, o resultado é que vai enterrar ainda mais. 

Por outro lado, a comissão de inquérito praticamente não abordou a reprivatização… 

Para já, não acho que o tema da privatização ou da reprivatização fosse um tema desta comissão. Esta pressa de privatizar é puramente eleitoralista. A TAP deu votos quando era para salvar, aí todos viam as caravelas, depois da comissão acharam que afinal não eram caravelas nenhumas e é para deitar fora.

E rapidamente a empresa deixou de ser uma empresa de bandeira… 

Não é uma empresa de bandeira, não há coisa nenhuma e se calhar o hub também é para ir embora, o que veio prejudicar muitíssimo o cenário em que se possa imaginar o Estado estar sentado ao lado de um acionista privado. Não sei quem é o acionista privado que se quer sentar ao lado deste Estado, porque também vimos a forma como o anterior acionista que estava nessa posição foi tratado. Claro que temos duas versões e não temos nenhuma sentença judicial que diga que a mais plausível é esta ou aquela. Perante este Estado e digo perante este Estado, não é perante um partido pensar ‘não, prefiro comprar uma outra companhia ou criar uma minha’. Por exemplo, nada impede à Lufthansa de chegar e dizer: ‘Agora tenho uma Lufthansa Portugal’. Já o fez na Itália há cerca de 15 anos, não foi um modelo bom. Neste momento tem um outro modelo que é a Eurowings, companhia do grupo Lufthansa que é híbrida com várias bases: em Praga, Estocolmo, Salzburgo, Palma de Maiorca, etc. Nada a impede de criar aqui uma base operacional. O mesmo se aplica à TAP. Se quiser também pode ir para Paris e dizer que vai fazer voos diretos de Paris para o Rio de Janeiro, por exemplo. Temos é de ter noção de que esta abertura coloca a TAP no ponto em que o que vale muito são os slots, porque o aeroporto de Lisboa está congestionado e mesmo que a Lufthansa quisesse colocar cá uma base da Eurowings iria ter dificuldade em adquirir os slots, a não ser que a TAP cedesse alguns. 

Antes da comissão de inquérito houve vários grupos que foram apontados como potenciais interessados, como a Lufthansa, a Iberia. Com estas conclusões poderemos assistir a um recuo por parte destes grupos? 

Querem questionar aquilo que é normal: qual é o caderno de encargos e como é que esta privatização vai ser feita. Todos vão querer ver o dossiê da TAP e neste momento de privatização há muita informação – aquela confidencial que estava no computador de Frederico Pinheiro – que vai ter de ser divulgada e muito mais. Vão ter de ser dados detalhes ao potencial interessado que são preciosíssimos até do ponto de vista da concorrência. De outra forma, nenhum desses dados seriam divulgados se não estivéssemos num processo de privatização. Daí também achar que é o momento em que se expõe demasiadas fragilidades a toda a concorrência e mais alguma. 

Por isso há quem diga que ainda vamos pagar para vender a TAP…

Também não me parece o momento adequado de pôr a gestão que acabou de chegar à TAP num modo de privatização. Uma empresa quando está neste modo de privatização tem de focar todos os seus recursos, toda a sua atenção na exigência que é lidar com os potenciais investidores e liderar o processo de privatização. 

E o caderno de encargos terá de estar ‘armadilhado’ … 

Esse caderno de encargos até corre o risco de ter tanta coisa de acontecer… como já aconteceu no passado com a Alitalia, com a Olympic da Grécia, com a Malev da Hungria, com a Adria da Eslovénia, em que o Governo na sua inexperiência económica e de gestão e nas suas ambições eleitoralistas e políticas estar tão fora da realidade que ninguém se interessa. Ou por outra, toda a gente se interessa em ver os dossiês, mas ninguém põe o dinheiro na mesa. E isso também já aconteceu no passado com a TAP, em que houve várias tentativas de privatização que ficaram desertas. Querer vender não significa que haja um comprador no final que ponha o dinheiro na mesa e é isto que queremos. 

Mas faz sentido esta pressa do Governo, já que a TAP deu agora resultados positivos? 

Os resultados positivos são uma farsa. Não se fazem apresentações de resultados à porta fechada. Nem foi à porta fechada, foi por comunicado às 7h da manhã, sem perguntas e fechada à imprensa. Essa pressa é eleitoralista, é simplesmente seguir o sentido do voto. 

Porque é que diz que os resultados são uma farsa? 

Uma parte devido a um benefício fiscal que foi conseguido e justifica praticamente metade do valor dito positivo. A outra tem a ver com as concessões laborais que em 2022 já não faziam sentido e também foi isso que deu o tal conflito entre sindicatos e administração. Na verdade, estas condições laborais foram feitas em todas as companhias aéreas, mas a partir do momento em que viram que afinal 2022 iria ser um ano diferente… 2022 começou com a Ómicron ainda com muitas restrições, mas a seguir assistiu-se àquela explosão, em que as companhias congéneres europeias repuseram as condições e fizeram promessas relativamente a 2023. A TAP deveria comportar-se como as outras congéneres e estes cortes salariais em 2022 já deveriam ter sido repostos. E 2022 já foi um ano excecional, ninguém estava à espera. A folha de Excel que dizia que o lucro era não sei quanto errou para todo o lado, mas errou para todas as companhias. Ninguém estava à espera e as companhias ao não estarem preparadas tinham menor capacidade de resposta e puderam aumentar as tarifas. Portanto, o que sentimos em 2022 foi uma combinação perfeita na Europa e nos Estados Unidos. Atenção, isso não se aplica a outros continentes, nomeadamente a Ásia. Mas na Europa e nos Estados Unidos o que aconteceu foi: ‘Tenho poucos lugares e posso vendê-los ao preço que quero e vão cheios na mesma’. Subiu-se a tarifa e os voos continuaram lotados, atingiram-se recordes de lotação e de tarifa. 

Em relação aos potenciais interessados, o maior risco apontado é o grupo da Iberia por causa da aproximação com o hub de Madrid. Concorda? 

Não. Para já vamos definir: não é a Iberia. Fez bem em dizer que é o grupo, no qual a Iberia está integrada. A IAG é um grupo em que as companhias aéreas mantêm um alto nível de autonomia e em termos de proximidade do hub é a maior falácia. E vou dar-lhe dois exemplos muito concretos, no caso da Air France KLM, os hubs estão a uma diferença de 400 quilómetros. No caso do grupo Lufthansa, o hub entre todas as companhias estão num raio de cerca de 300 quilómetros. O que funciona bem num grupo aéreo é justamente a proximidade, não é a sua distância. Quando estamos a falar de grupos aéreos não é de parcerias, mas alianças aéreas.

Mas a privatização terá de ter em conta as ilhas e a diáspora… 

Nenhum grupo aéreo quer chegar aqui para cortar a galinha dos ovos de ouro. Vou dar outro exemplo: Lisboa, Joanesburgo. Temos uma grande diáspora na África do Sul e como esse voo não era rentável a TAP cortou, mas abriu Lisboa/ Punta Cana e Lisboa/ Cancun. E foi a TAP pública detida pelo Estado. Se estava muito preocupada com a diáspora até podia dizer que iria retomar essa ligação. Funchal/Caracas é a mesma coisa. A maior parte da imigração venezuelana é da Madeira e tem de vir a Lisboa para voltar para Caracas. Lisboa/Porto Santo nunca tínhamos estado sem ligação aérea direta, um voo sem escala entre Lisboa e Porto Santo e também foi cortado com a TAP pública detida a 100% pelo Estado. Fala-se muito da continuidade territorial, mas o que abriram foi Lisboa/ Fuerteventura, Lisboa/ Ibiza e fecharam Lisboa/Porto Santo porque dava prejuízo. É fácil e populista dizer que se quer proteger o hub. É fácil vir com esse argumento que não tem factualidade aeronáutica, não é aquilo que acontece, não é aquilo que inclusivamente os outros grupos praticam. E também esta questão da diáspora e da continuidade territorial não a vejo na prática nos dois, três anos em que o Estado esteve na TAP e, como sabemos, podia fazer o que queria e bem lhe apetecia. Pelo contrário, abriram Fuerteventura, Punta Cana, Cancun, Djerba, Monastir, Ibiza e até estávamos num período em que muita gente passou a ir às ilhas portuguesas porque não era fácil ir para outros sítios. Era mais fácil no tempo da covid visitarmos o nosso território nacional e, mesmo assim, fecharam a ligação a Porto Santo e por ironia a Iberia faz Porto/ Porto Santo e Lisboa/Porto. 

Em relação ao novo aeroporto, como vê esta hipótese de serem analisadas tantas alternativas?

Perde-se uma boa oportunidade para fazer o estudo que verdadeiramente interessa. Estamos a fazer um estudo de localização quando deveríamos fazer um de locomoção. Uma vez que este aeroporto é para abrir daqui a 10 anos, até mais, e que é para servir desde 2035, vamos pressupor, para daí a mais 100 anos, o que devíamos estar a perguntar é como é que mais ou menos nessa altura a locomoção vai ser feita. Se nos colocássemos esta pergunta em 1960 ou 70, tínhamos uma resposta, em 1990 outra e em 2000 outra. E agora temos outra completamente diferente. Sentimos, seja por uma medida regulamentar diretiva europeia de substituir quando se fala em substituição do transporte aéreo pelo transporte ferroviário e disso ser uma ambição europeia regulamentar de proibir uma em prol da outra, isto está a dar-nos já um sentido e uma orientação. E quando se vai ao aeroporto de Lisboa e se olha a tabela de partidas, não está com dez voos por dia para Maputo ou para Nova Iorque, está com dez voos por dia para o Porto, com quatro para Faro, 20 para Madrid, dez para Barcelona. Conseguimos perceber – e é natural – que esta nova tecnologia e ambição regulamentar que vai ser colocada no mercado, seja pela pressão da agenda climática e pelo próprio progresso e pelo interesse de ficar cada vez mais independente do fóssil. Isto vai ter consequências ao nível da locomoção aérea. Aquilo que nos parece natural fazer hoje de avião, muito em breve, não será. Vou dar o exemplo de uma ligação emblemática: Paris-Bruxelas ou Paris-Londres. Eram, nos anos 80, 90, as ligações europeias mais intensas. Hoje em dia não há voos entre Paris e Bruxelas. A Air France tem um código no TGV que sai de três gares em Bruxelas. É ótimo. A pessoa pode entrar numa ou noutra consoante o local onde vive e sai diretamente no aeroporto de Paris ou em Paris cidade. Isto tem exemplos práticos, não é só uma questão teórica. E mais quando associa a estes exemplos práticos que foram conquistados sem um esforço legislativo. Mas quando acrescenta uma obrigação legislativa, consegue perceber que vai haver mudanças e isto não está a ser estudado. Temos que atualizar estes estudos, mas não numa perspetiva de localização. Temos que perspetivar o que é que vai acontecer ao transporte aéreo. A própria linha de alta velocidade, o próprio TGV, o comboio de alta velocidade, vai sofrer evoluções tecnológicas. Fala se muito no Hyperloop, por exemplo. Fala-se também no comboio que funciona sobre linhas magnéticas que já existem, já acontece na China, com investimentos colossais. Mas isto coloca-nos esta questão que é para onde se vai canalizar o investimento público? Se calhar, se de repente investir em modos alternativos que sei que vão ser um futuro, terá como consequência aliviar este aeroporto. 

Não faz sentido estarmos a falar do esgotamento da Portela? Neste momento está, mas daqui a uns anos não estará.

Exatamente. Tal como estava nos anos 90, quando Ferreira do Amaral disse que quando num virar do século atingirmos 16 milhões de passageiros, o aeroporto da Portela está esgotado. São declarações oficiais. Atingimos 32 milhões. Ele tinha razão. Aquele aeroporto de 1992 que ele foi visitar estava, de facto, esgotado. Mas aquele aeroporto evoluiu. O que estamos a impedir muito é a evolução deste aeroporto. E é impedi-lo por questões claramente interesseiras.

Como nos disse, é uma tentativa de desacreditar a Portela.

Claro. E essa tentativa continua ainda com o benefício ou com o rebuçado de lá à frente vão estar imensos contratos com ajustes diretos de vários milhares de milhões. Estamos a falar, muito provavelmente, de uma das maiores obras que Portugal fará, diria, a seguir à Expo e à Ponte Vasco da Gama, a combinação destas duas obras e esta será a próxima.

Apresentou uma proposta com João Soares. Que proposta é esta?

Sim. A proposta que chamei de 5G porque é uma questão geracional também e de tecnologia que é justamente centrar o investimento público naquilo em que Portugal está de facto atrasado, que é na conexão à linha de alta velocidade europeia através de Espanha, obviamente. E com isso, mais uma vez, o que vamos provocar. É um pouco como Espanha que investiu em 92 na primeira linha de alta velocidade e hoje é o país líder de alta velocidade. Ao fazer isso, a consequência imediata foi uma redução do número de voos domésticos nessas linhas em que coincide ter a linha de alta velocidade, porque as pessoas claramente preferem a opção mais prática do comboio. Temos que fazer isso do nosso lado. E, ao fazer isso, vamos reduzir o número de voos da Portela, que são estes que têm os aviões mais pequenos, mais frequentes, em horários mais nobres. Quando estamos do lado de Lisboa-Porto não estamos a falar de voos às 02h00. São voos de hora a hora nas horas nobres. Essa é uma parte. A outra parte é, obviamente, fazer obras na Portela, que não é intervencionada desde 2016. 

Mesmo assim está a sofrer obras de x em x tempo. 

Mas isso é a vicissitude dos aeroportos. Os aeroportos são aquela coisa que nunca deixa de estar em obras porque normalmente existem sempre várias fases de construção, justamente porque é um organismo vivo. Ele ajusta-se, adapta-se às necessidades da evolução e da própria evolução tecnológica.Os aeroportos têm uma adaptação constante. E isto não é feito neste aeroporto há já muito tempo. Por outro lado, além das obras, há a questão da descentralização. Falamos muito na descentralização do turismo e de querer partilhar esta galinha dos ovos de ouro, até para benefício próprio. Temos a perfeita noção de que Portugal beneficiaria muito mais e os lisboetas beneficiariam muito mais se os turistas fossem também para outros sítios do país. Um deles, em que sentimos que estatisticamente, o turismo internacional é comparativamente mais fraco é o Alentejo e outro é o Centro, que são, curiosamente, as regiões que não têm aeroportos ou que não têm aeroportos com acessibilidade e conectados com o resto do mundo. Ora, claro, se me dissessem em 1970, investir num aeroporto em Beja para receber turistas da Alemanha, provavelmente diria que isso era uma loucura. Mas, mais uma vez, temos que olhar para Beja, não como alternativa de Lisboa – não é dizer às pessoas do Marquês de Pombal irem de repente agora a Beja apanhar um avião – mas para criar um acesso direto a uma região que sabemos que as pessoas têm que aterrar aqui para chegar lá. Se quero ir para a Comporta hoje, ou à Costa Vicentina ou aos n hotéis que existem hoje pelo Alentejo fora, tenho que aterrar em Lisboa. Ou em Faro. 

Mas falamos no novo aeroporto de Lisboa, o que centraliza a discussão.

Tem toda a razão. Mais uma vez esta foi uma forma muito hábil dos políticos não permitirem esta discussão.

Mas Santarém está nessas possibilidades.

Porque está incluído na região de Lisboa. A resolução do Conselho de Ministros é muito específica naquilo que é a solução para a capacidade aérea de Lisboa. 

Mas para Galamba, só faltava dizer o ‘jamais’ de Mário Lino há uns anos em relação a Santarém. Ficou praticamente excluindo?

Acho que sim.

A discussão está muito centrada em Alcochete.

Vou parafrasear Paulo Portas porque tem muito mais visão do que eu em termos de notoriedade e que disse que isto é, afinal, a Comissão de Promoção de Alcochete. Digo isto desde o início e fiquei consciente depois da minha reunião na comissão Técnica ‘Dependente’ de 14 abril. Ao sair de lá, fiquei com a plena consciência de que, primeiro que tudo, não era uma solução para o país que se procurava, nem uma solução de questionamento e de avaliação da acessibilidade e conectividade do país como um todo, esse é o ponto número um. O ponto número dois foi, claramente, a opção de Alcochete que já está decidida.

Montijo fica para trás.

Sim, Montijo fica para trás.

Mas Alcochete já falhou a parte ambiental, fala-se que são dez anos a ser construído, é só obstáculos. Mesmo assim, há resistência em relação ao Montijo que está minimamente preparado para ser uma solução.

Repare como isto foi habilmente manipulado também. Falava-se no Montijo, como no despacho de Pedro Nuno Santos, como aquele salto intermédio entre aumentar rapidamente a capacidade aeroportuária de Lisboa e esperar até à construção do Montijo. O que se fala agora é ter Portela por mais 10, 12 anos o que significa um não a Montijo.

E depois vai tudo para Alcochete.

Exatamente. 

E os espaços da Portela? A urbanização turística?

Isso ainda está a Comissão a decidir e a julgar se o dual hub, se este é um aeroporto de cidade, se fica ou não, é muito pouco conclusivo.

Mas a ideia inicial era sempre para empresas como TAP, British Airways e mais uma série de companhias aterrarem na Portela.

É incompatível. 

E depois seria low cost para o segundo. 

Isso é incompatível. Se eles deixarem este aeroporto aqui aberto numa ótica de hub, a TAP é a primeira a sair. Porque um aeroporto de cidade, o que se quer é o género de London City. É um aeroporto com muitas restrições ao fim de semana. Ou Milão Linate. São dois aeroportos de cidade que ficaram com restrições ao fim de semana e restrições noturnas muito fortes que não são compatíveis com uma TAP, por exemplo, que quer fazer hub e quer ter o aeroporto 24 horas aberto, porque quer ter aviões a chegar às 02h00 e outros a saírem às 03h00, sem restrições e sem penalizações. Portanto, ao fazer essa solução é impossível.

Mais facilmente ficam as low cost cá.

Exatamente. E isso causa um problema ao Governo, que neste momento tem uma pedra no sapato que não sabe como descalçar. Nem a comissão que provavelmente tem a missão do Governo de dizer ‘não, mas este aeroporto fica só para a TAP que é aquele que nos dá a vantagem’. Uma TAP neste aeroporto continua com um domínio fantástico sobre não só o mercado local – aquele que quer Lisboa – como também continuar a fazer o hub. Então isso é a coisa mais ridícula. Se essa for a conclusão da comissão, é só a medida ou a sugestão mais ridícula que é de manter este aeroporto para uma companhia hub que quer funcionar 24h e mandar aquelas companhias que, de qualquer forma no seu comportamento, aterram às 09h00 e às 23h00 está acabado o dia. Não estou a ver como é que isso é compatível.

Em termos de concorrência não é nada simpático.

Para a TAP ser aquela que vai lá para fora e uma low cost estar cá dentro, para o mercado local é pôr a TAP um pouco fora do jogo, para o mercado de Lisboa. Depois se for para outros sítios do país, talvez aquele aeroporto seja mais conveniente. Temos que ver. É curioso quando fazemos este debate de ver se é longe, se é perto, assumimos que a centralidade é Lisboa. E, enquanto lisboetas, temos de sair desse umbigo que nos faz sempre pensar que tudo gira à volta de Lisboa. Neste aeroporto – e é pena não fazerem isto neste estudo – devia perceber-se quem é que são as pessoas que utilizam o aeroporto de Lisboa. Lisboa, em termos de população, comparativamente a outras cidades à volta de Lisboa, tem menos. O aeroporto, dependendo da localização, até pode ser mais próximo de alguns centros urbanos onde as pessoas vivem e de onde elas saem para apanhar um avião do que propriamente o aeroporto.

Noutros países não nos queixamos.

Mas aqui queremos ter um aeroporto à porta de casa. E voltando ao turismo, a melhor forma de o centralizar é multiplicação dos acessos. O que testemunhamos hoje é que nos anos 80, se formos analisar quantas cidades portuguesas do continente estavam ligadas a França e a quantos aeroportos em França ou a Espanha, tínhamos três cidades portuguesas ligadas a quatro aeroportos franceses. Hoje temos três aeroportos portugueses na mesma ligada a 23 aeroportos franceses. Claro que são países com dimensão diferente, mas se quisesse colocar de repente todo este tráfego só em Paris e dizer às pessoas de toda a França que só tem um ou dois ou três aeroportos que não podem passar, estaria, para já, a colocar um peso enorme sobre essas infraestruturas e, segundo, estaria a impedir que as pessoas fossem para outros locais. Temos que criar outro tipo de acessos. Por exemplo, Alborg, uma cidade no meio da Dinamarca, está ligada neste momento a Nova Iorque. Tem três vezes por semana. Isto há 30 anos era impensável até pela própria tecnologia. Hoje em dia temos aviões pequenos, super económicos. Temos que saber adaptar e aproveitar essa vantagem. Aquilo que não se podia fazer nos anos 70, hoje podemos fazer. E porquê que estamos a impedir? Não sei. O que me faz sempre impressão é que temos ‘n’ programas de centralização do turismo, 200 milhões para aqui e 50 milhões para ali… criem acesso, estimulem o acesso, utilizem os aeródromos regionais para aceder a essas regiões.

Chegou a apresentar uma queixa em Bruxelas por causa dos critérios de escolha do novo aeroporto. Como é que está este processo?

Apresentámos esta queixa por dois motivos: um, pela desconsideração das metas ambientais. Como é que é possível termos metas ambientais muito concretas, seja pelo ‘Fit for 55’ da União Europeia, seja até pelas próprias COP que impõe que os Estados dizem: ‘Sim senhor, vamos reduzir as emissões até 55% até 2030 e ambicionar a neutralidade carbónica em 2050’. Como é que nós, Estado, vamos cumprir com esse objetivo quando estamos a construir algo para aumentar uma capacidade aérea de uma indústria que não tem hoje nem amanhã, soluções para reduzir a sua pegada carbónica? Isso parece-nos um motivo para hoje em dia dizer ao Estado português que está em incumprimento em relação a essa questão. Por outro lado, apresentámos também no sentido de se existe uma discussão – que sabemos que existe – a nível europeu, de terminar com as ligações aéreas de curta distância, como é que um país que não investe na alta velocidade, mas que continua a investir no transporte aéreo, como é que isto é compatível com aquilo que se avizinha? Este não é um investimento público. Aliás, a União Europeia já decidiu que os aeroportos não recebem fundos europeus. Portanto, ela própria já deu um passo nesse sentido. A resposta que recebi da Comissão é que estão atentos a estas questões, mas que por um lado, não existe nenhuma decisão de construir. Portanto, não há uma decisão aqui que se possa impugnar e, por outro lado, não existe uma penalização pelos Estados que não cumprem.

Como vê essas respostas? 

Vejo com enorme desilusão. Porque fica claro que isto é o chamado green washing, ou seja, a política sente que há uma pressão à qual tem que dar uma resposta e que os interesses económicos não estão de acordo com essa urgência ou com essa pressão que está a ser feita. Entra aqui o marketing, o marketing político, o marketing empresarial, para nos dar a impressão de que alguma coisa está a ser feita. E é mais ou menos a mesma coisa se eu dissesse: ‘Olhe, não pode ir roubar um banco, mas se roubar não lhe acontece nada’. Sem punição, sem uma penalização, há uma declaração de intenções, fica bem. E depois as pessoas, na sua cabeça, pensam que está a ser resolvido. Não está. 

E em relação à contratação de quadro da ANA poderá criar alguns problemas, apesar da presidente já ter garantido que não há haverá situações de incompatibilidade….

Em termos de estudos, o pecado original que temos que nos perguntar é porque é que Mafalda Carmona se demitiu e nesse mesmo mês da demissão, soubemos que a comissão ia ter carta branca para fazer ajustes diretos. Sabemos que Mafalda Carmona, que se ocupava da parte jurídica, estava incompatibilizada com a pressa de, nomeadamente, Maria Rosário Partidário, que diz que é muita burocracia e que atrapalha. Esta suspensão ou exceção que é feita à comissão técnica independente, para mim é absolutamente inaceitável. Não há nenhuma urgência. Construir um aeroporto não rima com urgência, porque demora. E este então já vai com 50 anos de atraso. Não vejo como é que se pode suspender algo que nos garante alguma transparência, rigor e a sensação que estamos de facto perante uma comissão minimamente técnica e minimamente independente. Em relação aos vários estudos que já têm sido adjudicados a pessoas que têm claramente uma opinião sobre Alcochete, favorável a Alcochete, e até à resposta de Maria Rosário Partidário, que disse ser normal que todos tenham uma opinião, senão quem é que iria contratar? Não há ninguém que não tenha uma opinião. Pois é, mas para isso é que servem os concursos públicos, porque os concursos públicos são internacionais e há muita gente por essa Europa fora que já construiu aeroportos. Nenhuma destas pessoas desta comissão construiu alguma vez algum aeroporto. E, obviamente, quando se abre a possibilidade de um concurso público internacional, tem-se depois pessoas muito competentes. Podem é não ter a opinião que interessa e que dá jeito. É sobretudo isto que depois, com estas justificações, se procura secundarizar e quase chamar-nos estúpidos. Fazer de nós estúpidos. Não é plausível acreditar que esta Comissão é independente pelos atos que têm sido dados e sobretudo pela total flexibilidade jurídica que eles têm neste momento.

Continua a ser o Aeroporto Pedro Nuno Santos.

Absolutamente. Aliás, a solução que vai sair vai ser uma confirmação do despacho de Pedro Nuno Santos. Com ou sem Montijo. Montijo é um detalhe, aquilo era uma vírgula. Essa parece-me que está afastada, mas Alcochete sim, está tudo a indicar nesse sentido. E repare que esta Comissão nasce de uma resolução do Conselho de Ministros, depois de um concurso público internacional ter sido mandado abaixo. A avaliação ambiental estratégica tinha sido alvo de um concurso em 2021, quem encabeçava esse concurso público divulgou os quatro consórcios em janeiro de 2022. Em abril, escolheu um consórcio, se bem se lembram, era aquele que incluía uma empresa que pertencia ao Estado espanhol e, portanto, punha em causa a soberania portuguesa e o hub de Lisboa. Então o que é que se fez? Mandou-se o concurso abaixo. Já estava adjudicado. O que veio a seguir? Uma concertação entre PS e PSD para escolherem uma comissão que satisfaz mais ou menos aos dois.

E Alcochete vai satisfazer mais ou menos os dois?

Acho que tiveram tempo de preparação suficiente para que isso aconteça, para que se satisfaçam. Provavelmente, originalmente, não. Em francês chama-se a isso uma rattrapage, que é, no fundo, recuperar o tempo perdido.