Costa só enviou ‘lei malandra’ a Marcelo depois das buscas

Divulgando uma cronologia dos factos que rodearam a ‘Lei malandra’, Marcelo demonstra que não houve coincidências ‘montadas’, e revela que o diploma só foi para Belém depois das buscas em São Bento.

O congresso do PS, no último fim de semana, foi o palco escolhido pela velha guarda socialista para desenvolver a nova tese da ‘cabala’, que teria sido montada para decapitar o partido.   Horas antes do início do Congresso, o jornal Observador publicou uma notícia dando conta de que a investigação a António Costa tem por base a elaboração e aprovação da lei do licenciamento urbano e industrial, popularmente conhecida como ‘Lei malandra’.

Note-se que esta lei, envolta em acesa polémica, deu entrada em Belém no dia 9 de novembro, ou seja, dois dias depois das buscas em São Bento e da demissão de António Costa – parecendo assim destinar-se a branquear os crimes da Operação Influencer.

Perante as dúvidas que surgiram, Marcelo mandou-a para trás, acabando por promulgar uma 2.ª versão expurgada dos aspetos controversos. A promulgação deu-se nessa sexta-feira em que teve início o Congresso socialista, e logo de manhã o Nascer do SOL noticiava o facto. Mesmo assim, muitos dos pesos pesados do PS desenvolveram a tese de uma conspiração que juntaria Ministério Público e Presidência da República.

Perante isto, o Presidente viu-se na necessidade de esclarecer a cronologia dos factos, para eliminar qualquer dúvida sobre o timing escolhido para a promulgação da polémica lei.

Fê-lo numa nota extensa e muito detalhada, algo que não é comum acontecer neste tipo de promulgações. E ao Nascer do SOL, Marcelo esclareceu que a divulgou porque «depois da publicação da lei, choveram perguntas dos vários media».

Explique-se que, antes da promulgação de decretos, quando o Presidente tem dúvidas ou quer sugerir alterações para os poder promulgar, é comum haver um trabalho discreto entre palácios, que nunca é tornado público. Ao longo dos últimos oito anos este processo já se repetiu inúmeras vezes.

Mas desta vez foi diferente. E aos olhos de Marques Mendes, antigo ministro da Presidência, o facto justifica-se porque «este caso é completamente anormal». O ex-governante confirma que a nota de Belém não é comum, mas, acrescenta: «Neste contexto era obrigatória, porque o diploma que é apresentado ao Presidente da República está relacionado com uma investigação em curso na justiça», e as datas que são apresentadas na nota presidencial confirmam não só a decisão de Marcelo, como os timings que acabaram por coincidir com o Congresso socialista. Face a isto, e às acusações dirigidas ao PR, a nota com todos os esclarecimentos tornou-se ‘obrigatória’, apesar de inédita

OS FACTOS QUE DESMONTAM MAIS UMA TESE DA CABALA

12 e 13 de OUTUBRO 2023

Arguidos da Operação Influencer sob escuta.

Responsáveis da Start Campus – que lidera o projeto de construção de um mega data center em Sines, estimado em 3,5 mil milhões de euros, anunciado pelo Governo como o maior investimento em Portugal desde a Autoeuropa – estão sob escuta num inquérito do Ministério Público, a Operação Influencer.

Afonso Salema, CEO da Start Campus, transmite  a Rui Oliveira Neves, administrador na mesma empresa e advogado da sociedade de advogados Morais Leitão, que «Diogo (referindo-se a Lacerda Machado, gestor, amigo do primeiro-ministro) disse que falou com o Galamba (então ministro das Infraestruturas) e que aprovaram agora em Conselho de Ministros a criação do simplex de licenciamento para infraestruturas industriais de plataformas logísticas». Esta legislação fora preparada por um grupo de trabalho nomeado pelo Governo e coordenado por João Tiago Silveira, militante do PS, advogado na mesma sociedade (onde lidera o departamento de Direito público, urbanismo e ambiente).

Afonso Salema adianta que Galamba «pediu com urgência para saber o que é preciso ser agilizado no licenciamento de data centers». O interlocutor responde que vai falar com Tiago Silveira. E este dirá depois a Oliveira Neves: «O Galamba em Conselho de Ministros falou em aplicar o regime das dispensas de loteamentos (dispensa de procedimento administrativo) mediante parecer não vinculativo da Câmara, que na prática dispensa tudo. (…) À partida é uma coisa muito fácil pôr lá, já não é fácil aceitar, mas o espírito neste momento é aceitar». Acrescenta que não faz outra coisa «nos últimos dias a não ser tratar disto, já ando a tratar disto há meses, e estive com o Costa quatro horas a ver isto na quarta-feira e o gajo está completamente entusiasmado com isto», concretizando: «O espírito é acabar com a maluqueira que as câmaras inventam, o espírito é positivo». E avança que a alteração que está a ser pensada «é uma dispensa normalmente para coisas de entidade públicas, têm de arranjar aqui uma maneira qualquer de ligar isto aos projetos» dos privados e «a melhor forma de passar é a relação dos projetos com a Global Parques» (empresa pública, da AICEP, a entidade que tinha de emitir a licença à Start Campus).

De seguida, combinam uma chamada telefónica de ambos com Nélson Magalhães, o diretor jurídico da Start Campus, para falarem do assunto e ficarem todos «alinhados» sobre o tema. E em conversa com este, Oliveira Neves descreve o objetivo do decreto-lei que está a ser preparado à medida da Start Campus: «Simplifica-se para os data centers, mas só na medida em que seja através de entidades públicas. Nós não pedimos o loteamento, quem pede é o dono do terreno, e o dono do terreno é uma entidade pública. Isto é muito malandro, mas é por aqui que a gente tem que ir».

17 OUTUBRO

MP abre inquérito a António Costa no Supremo Tribunal de Justiça; primeiro-ministro é suspeito de prevaricação.

19 OUTUBRO

Conselho de Ministros aprova o ‘Simplex Industrial’.

Em comunicado, o Conselho de Ministros informa que aprovou «o decreto-lei que procede à reforma e simplificação dos licenciamentos no âmbito do urbanismo, ordenamento do território e indústria», seguindo uma lei de autorização legislativa da Assembleia da República, no âmbito do programa Mais Habitação. O decreto «enquadra-se na 2.ª fase do processo de simplificação de procedimentos administrativos e de reforma de licenciamentos, e está incluído no PRR e no Programa Simplex, surgindo na sequência da aprovação do Simplex Ambiente». A simplificação de licenciamentos tem por objetivos: promover o «crescimento, investimento e emprego», «reduzir o tempo e os custos para a construção de novas habitações» e, no âmbito da indústria, «os encargos administrativos e os custos de contexto, agilizando a atividade das empresas».

 7 NOVEMBRO

Buscas e detenções na Operação Influencer. António Costa demite-se.

8 NOVEMBRO

Arguidos detidos são presentes a juiz de instrução.

Em conjunto com os seus advogados, os arguidos têm acesso ao despacho de indiciação do Ministério Público, onde são descritos os factos em causa. Arguidos começam a ser ouvidos pelo juiz.

9 NOVEMBRO

Decreto do Governo enviado ao PR.

O decreto-lei aprovado em Conselho de Ministros e que inclui o simplex industrial dá entrada na Presidência da República – e, segundo esclareceu Marcelo, o «prazo constitucional de 40 dias para apreciação pelo Presidente da República» decorria até 19 de dezembro de 2023.

11 NOVEMBRO

Costa fala ao país.  

Após o comunicado no dia da demissão, António Costa faz nova comunicação  ao país. Responde às principais suspeitas que constam no despacho de indiciação do MP, começando, precisamente, por destacar as virtudes do diploma aprovado a 19 de outubro no Conselho de Ministros: «É dever dos governos a atração de investimento empresarial, designadamente promover a atração de investimento estrangeiro (…) É essencial para as empresas a redução de burocracia. O meu Governo iniciou em 2021 um simplex de licenciamento (…) que se traduziu na simplificação do licenciamento ambiental, que já está em vigor desde o início deste ano e, mais recentemente, na aprovação da simplificação do licenciamento da construção de habitações e do licenciamento industrial, diploma que já foi enviado a sua excelência o senhor Presidente da República, para apreciação e desejável promulgação. A simplificação promove a transparência, a burocracia promove a opacidade».

13 NOVEMBRO

Arguidos são todos libertados.

O juiz de instrução restringe os indícios criminais contra os arguidos a tráfico de influências, dando como não suficientemente indiciadas a corrupção e a prevaricação.

17 NOVEMBRO

O Nascer do SOL titula em manchete: ‘Governo mandou para Belém decreto que iliba arguidos’.

15 DEZEMBRO

(vésperas de férias judiciais)

PR devolve diploma ao Conselho de Ministros.

Marcelo Rebelo de Sousa diz que o faz «tendo em conta» que uma parte das matérias foi entretanto alvo de um outro decreto já promulgado, e também considerando «as dúvidas e controvérsias relativamente ao diploma, em particular as partes relativas ao licenciamento industrial».

Recurso do MP entra no Tribunal de Instrução Criminal de Lisboa.

Descontente com o despacho do juiz de instrução, Nuno Dias Costa, o MP recorre das medidas de coação dos arguidos.

21 DEZEMBRO

(último dia das férias judiciais)

O juiz admite o recurso do MP e manda a secretaria notificar os arguidos.

22 DEZEMBRO

O Nascer do SOL  titula em manchete sobre o recurso: ‘MP reitera que há corrupção’

27 DEZEMBRO

Governo envia ao PR nova versão do decreto do simplex.

Marcelo explica: «A 27 de dezembro de 2023 deu entrada na PR uma nova versão do diploma, em relação à qual o Governo informou que foi expurgada a parte relativa à diretiva a matérias relativas a processos em curso ao licenciamento industrial, mantendo, apenas, as relativas ao urbanismo e ao ordenamento do territorio (…) no domínio da habitação».

3 JANEIRO 2024

Advogados dos arguidos são notificados do recurso do MP.

O jornal Expresso dá notícia do recurso, ao final da tarde.

4 JANEIRO

PR promulga o decreto do simplex.

5 JANEIRO

Início do Congresso do PS. 

O Nascer do SOL noticia que o Presidente promulgou o decreto-lei após o Governo ter retirado a parte do simplex industrial que está sob investigação do MP.

O jornal Observador noticia que o MP, no recurso na Relação, considera que foi cometido um crime de prevaricação (do qual António Costa é também suspeito) na elaboração do decreto-lei. Ao incluir o simplex industrial de forma a satisfazer os interesses da Start Campus o Governo fez uma lei à medida, o que configura crime de prevaricação.

António Costa discursa no Congresso: «Podem ter-me derrubado, mas não me derrotaram». António Vitorino diz que «o calendário de certas notícias suscita perplexidades sobre se não há coincidências a mais» entre o que se vai conhecendo das investigações e os calendários políticos. E Ferro Rodrigues conclui: «Não há coincidências entre os timings políticos e os da PGR».

8 JANEIRO

Nota inédita do Presidente.

Marcelo Rebelo de Sousa – sob suspeita durante o fim-de-semana em que decorre o congresso do PS – publica no site da Presidência uma nota em que revela que só recebeu a ‘Lei malandra’ dois dias depois das buscas da Operação Influencer. Tendo 40 dias para promulgar o diploma, e deparando-se com o facto de este estar sob suspeita do MP, o PR devolveu-o ao Governo, que o retificou e o reenviou para Belém apenas a 27 de dezembro. Quatro dias depois o decreto-lei foi promulgado.