É o magistrado com mais idade a ser procurador-geral da República (PGR). A grande maioria dos magistrados, na sua idade, 70 anos, prefere gozar a reforma. O que o motivou a aceitar?
Também eu gostava de ter continuado na jubilação mas, face à insistência do senhor primeiro-ministro, Luís Montenegro, decidi aceitar. Considero que ainda tenho capacidade para levar por diante algumas das reformas de que o Ministério Público necessita e entendo isto, essencialmente, como mais um serviço em benefício dos cidadãos.
Parece que não aceitou o convite à primeira.
É verdade.
O Presidente da República não teve também um papel determinante para o convencer?
Não vou falar sobre o número de reuniões que mantivemos ou as pessoas que intervieram…
Diz o povo que ‘quem cala consente’. Vou fazer-lhe uma pergunta que não é da minha autoria, mas pegou moda: onde estava no 25 de Abril?
Em Lisboa, no primeiro ano da faculdade. Nesse dia, tinha um jogo de futebol no Estádio Universitário, mas fui o único que apareceu. O meu pai, que era da Guarda Nacional Republicana (GNR), era muito fechado a determinado tipo de pensamentos. Na manhã desse dia, ligou para casa para nos proibir de pôr o pé na rua. Mas eu saí. Era muito teimoso, acho que ainda sou.
Essa foi uma época bastante turbulenta nas faculdades: as RGA (reuniões gerais de alunos), pancadaria…
No início, ainda tive intervenção nalgumas RGA, mas rapidamente pensei que tinha de me aplicar nos estudos e concluir a minha formação.
Nasceu em Tábua. Quando veio para Lisboa?
Costumo dizer que foi um acidente de trabalho (risos). O meu pai, como já disse, era guarda da GNR e foi aí colocado. Mas só lá estive dois anos. Onde fiquei mais tempo foi em Pinhel, perto da terra onde o meu pai nasceu, Figueira de Castelo Rodrigo.
Onde fez a primária?
Em Pinhel.
O que queria ser quando fosse grande? Polícia, ladrão, índio ou cowboy?
(risos) Polícia das estradas.
Estava-se no início dos anos 60, nem devia haver muitos carros nessa zona. De onde saiu essa ideia?
De um despique com o meu irmão mais velho. Ele queria ser engenheiro para poder dar a carta de condução às pessoas. Eu queria ser polícia das estradas para as poder apreender. (risos)
Em Pinhel, havia liceu?
Não. Só havia um colégio que era incomportável para o salário do meu pai. A minha mãe, como era próprio da época, era doméstica, e nós éramos cinco irmãos. Era muito complicado colocar os filhos todos a estudar. Por isso, eu continuei os estudos na Escola Apostólica do Cristo-Rei, uma congregação de missionários alemã, em Gouveia.
Como interno?
Sim e fiquei lá até ao sexto ano.
Deve ter sido duro ficar longe da família.
Para um miúdo de dez anos, foi muito duro, mas eu tinha um grande instinto de sobrevivência e tentava não dar parte de fraco. Depois, o meu irmão mais velho já lá andava e isso deu-me ânimo. Era o tipo de formação habitual na nossa época. Muitos magistrados, de famílias humildes, passaram por isto. Era a única forma de conseguirmos estudar até um certo nível.
Alguma vez quis ser padre?
(risos) Sempre disse que não queria! Eles diziam que gostavam de formar homens para a vida e, efetivamente, formaram muitos homens para a vida. Também não eram muito rígidos. Tínhamos distrações, jogos de futebol, torneios inter-escolas. E eu tocava numa banda de música para alunos internos, que acabou por falta de voluntários. Foi criado um conjunto que integrava pessoas que pertenciam à banda.
O que tocava?
Primeiro toquei trompa, depois passei para o trompete, que era outro tipo de instrumento, não de acompanhamento, mas de solo. E quando o meu irmão mais velho atingiu a idade para entrar na faculdade, em 1971, tivemos de nos mudar para Lisboa. Com o ordenado do meu pai, não havia dinheiro para suportar a estada do meu irmão na universidade. Eu estava no sexto ano, mas numa alínea que não dava acesso a Direito, fui para o Liceu Camões e mudei de curso. Aí, tive professores muito bons, como o Vergílio Ferreira e o Mário Dionísio.
Eram ambos opositores do regime. Tentaram catequizá-lo?
A nossa vivência, em termos políticos, não é igual à de hoje. Mas lá íamos aprendendo alguma coisa.
Era bom aluno?
Na Faculdade de Direito, tive média de 15 valores. Mas só estudava para dispensar às orais e era aí que se apanhavam as boas notas. Quando chegava junho, eu queria era ir para a praia. Em setembro, regressava para trabalhar.
Estudava em função da praia?
Mais ou menos isso.
Terminou Direito em 1978, mas só entrou no CEJ (Centro de Estudos Judiciários) em 1980. O que fez, entretanto?
Na faculdade, tinha sido monitor da cadeira de Direito Processual Civil e fui convidado pela doutora Isabel Magalhães Colaço a ficar, mas não aceitei. Precisava de trabalhar para aliviar a família e, naquela altura, não era fácil arranjar emprego. Fui a várias entrevistas e acabei por ficar como diretor de recursos humanos de uma empresa de segurança, a Grupo 8. Depois, a certa altura, concorri simultaneamente para a Polícia Judiciária, a Inspeção do Trabalho e o Ministério Público (MP). O primeiro exame que surgiu foi para o MP e fiquei.
Entra no CEJ na fornada dos chamados ‘magistrados de aviário’. Os juízes, na altura, olhavam com desconfiança para uma escola de magis-
trados. Achavam que eles se formavam na barra, com a experiência. Foi aluno de Laborinho Lúcio?
Foi um curso especial, sim. Um curso de sete ou oito meses. Saíamos do estágio e éramos lançados à sorte. O doutor Laborinho Lúcio, penso, era o diretor do CEJ. Não havia, digamos, o acompanhamento que hoje existe em termos de atualização da formação e de formação especializada. Mas tive o privilégio de ter sido colocado na comarca de Lisboa, no 4.º Juízo do Tribunal do Trabalho, onde havia magistrados muito bons, como, por exemplo, o doutor Morais Antunes. Aprendi muito com eles.
Deve ter sido complicado. Havia processos que vinham ainda da Revolução de Abril?
Os Tribunais do Trabalho, antes do 25 de Abril, dependiam do Ministério das Corporações e tinham acabado de ser integrados na jurisdição dos tribunais comuns. Havia muita litigiosidade em consequência, nomeadamente, ainda do 25 de Abril, com muitos despedimentos infundados.
E saneamentos?
Sim. A fundamentação era praticamente sempre a mesma: a pessoa em causa tinha pertencido à Ação Nacional Popular (ANP). Havia imensos casos e muita pressão por causa dos atrasos na área laboral. Houve um processo de impugnação de despedimento, por exemplo, que envolvia um trabalhador que tinha morrido no decurso do processo e quem estava no inquérito era a viúva. Aí, até fizemos um acordo. O Tribunal do Trabalho foi daqueles em que me senti melhor. Senti que estava a cumprir uma função social muito importante. Mal as pessoas me entregavam a documentação, punha as ações muito rapidamente.
Como era a Justiça quando iniciou funções como magistrado e como é agora? Quais são as diferenças principais, os aspetos positivos e os negativos?
Já havia falta de magistrados. Lembro-me do meu primeiro dia. Havia uns quatro meses que o tribunal estava sem magistrado do MP porque o que lá estava tinha ido fazer um estágio na área da jurisdição comum. No meu gabinete, 80% dos processos do 5.º Juízo forravam as paredes. Tinha 100 exames médicos para marcar! Não havia oficiais de justiça suficientes para despachar os processos. Os oficiais de justiça eram dispensados pelo juiz presidente do Tribunal (normalmente os que não interessavam) e era o MP que lhes dava formação. Portanto, não foi fácil. Depois, tudo era feito à mão(raramente datilografados): requerimentos, petições, contestações e recursos. Mais tarde, começámos a ter oficiais de justiça que já datilografavam as tentativas de conciliação de acidentes de trabalho. Se nos enganássemos e não pudéssemos emendar, tínhamos de repetir tudo novamente… Hoje já não é assim, as novas tecnologias trouxeram à Justiça um grande benefício. Mas também trouxeram algumas questões, nomeadamente, o tamanho dos despachos – que, hoje em dia, a meu ver, é completamente incomportável.
Como foi para o Gabinete de Informatização Judiciária?
Antes disso, em 1987, saí do Tribunal de Trabalho e fui para as varas criminais do Tribunal da Boa-Hora. Fui colocado numa seção do terceiro juízo, a qual ninguém queria. Éramos muito poucos. Havia seções que nem tinham magistrado. Quando tinha disponibilidade, lá os ia substituir.
Lembra-se do seu primeiro julgamento?
Foi a violação de uma criança pelo companheiro da mãe. Para mim, foi um choque enorme.
E daí passa para o Gabinete de Informatização Judiciária?
Aí passou-se uma história interessante. Um recluso tinha morrido no Estabelecimento Prisional do Linhó e havia um processo disciplinar contra o diretor, dois chefes de guardas e um médico. Segundo a acusação, o recluso tinha sido agredido e colocado, completamente nu, durante quatro dias, na cela disciplinar. Morreu de broncopneumonia. Então, Laborinho Lúcio, que era o ministro da Justiça na altura, pediu ao vice-procurador-geral, Dias Bravo, que indicasse um magistrado para fazer o processo disciplinar e eu fui o escolhido. Na altura, as diligências estavam a ser acompanhadas pela Amnistia Internacional e outras entidades internacionais. Portanto, havia muita pressão para terminar o processo. Como estava ainda na Boa Hora e tinha muitos julgamentos, pedi ao vice que me dispensasse dos julgamentos para conseguir fazer as diligências rapidamente. O doutor Dias Bravo falou com o coordenador da informatização dos tribunais para ver se ele me arranjava um espaço para trabalhar enquanto tivesse o processo disciplinar.
E acabou por lá ficar?
Sim, fiquei como secretário do coordenador.
Como é que isso acabou?
Acabou com uma proposta de aposentação compulsiva para o diretor, dois anos de suspensão para o médico da prisão e dois anos de suspensão para os chefes de guardas. Mas, em relação ao diretor da prisão, a decisão foi revertida pelo Supremo Tribunal Administrativo (STA). Tinha-me sido requerido que juntasse todos os processos disciplinares abertos na Direção-Geral dos Serviços Prisionais nesses dois últimos anos. Isto porque havia uma norma na área laboral privada que dizia que uma entidade empregadora devia decidir os processos disciplinares segundo a ‘prática disciplinar da empresa’. Considerei que, face à gravidade da conduta imputada e provada, essa norma não era aplicável na função pública, tendo a decisão sido revertida pelo STA em relação ao diretor. Quanto aos outros, mantiveram-se as penas.
As classes defendem-se?
Respeito a decisão do Supremo. Entretanto, o diretor atingiu a idade da reforma e saiu do EPL.
Foi depois auditor jurídico no Ministério das Obras Públicas, até 2008. Isto deu-lhe uma perspetiva única sobre os grandes contratos públicos, ou não?
O auditor jurídico, na altura, era muito importante, nomeadamente naquele Ministério. Tínhamos bastante litigiosidade e eu tinha um grupo de juristas que me apoiava, e, portanto, percebi muitas coisas, sim. Presidi com alguma frequência a concursos públicos, porque era normal os magistrados do MP estarem presentes em concursos públicos relevantes. Cheguei a ser, e já estava no Tribunal Central Administrativo, presidente de júri dos concursos relativamente aos helicópteros para o INEM e para os incêndios.
Concorda com o ex-presidente do Supremo Tribunal de Justiça, Henrique Araújo, quando disse que a corrupção está instalada na administração pública?
Admito que há corrupção, muita tentativa de tráfico de influências, mas o nosso papel é tentar investigá-la e foi o que fiz enquanto estive à frente do Departamento Central de Investigação e Ação Penal (DCIAP). Neste momento, continua a ser essa a minha preocupação. Por isso, enquanto PGR, estabeleci com o Sr. Vice que seria eu a superintender ao DCIAP.
Em 2013, foi nomeado diretor do DCIAP, onde fez dois mandatos. Qual foi o processo ou os processos que mais o marcaram? Como foi tomada a decisão de deter José Sócrates? Foi com a PGR Joana Marques Vidal?
Penso que, no departamento, dificilmente haverá processos em catadupa como nesse tempo. Processos muito importantes que todos conhecem, como a Operação Marquês, o do BES, a Operação Fizz…
Na operação Fizz, estavam em causa as suspeitas de corrupção de um ex-procurador do DCIAP, Orlando Figueira, e do alegado corruptor ativo, Manuel Vicente, à época vice-Presidente da República de Angola. As pressões de Marcelo Rebelo de Sousa e do ex-primeiro-ministro António Costa eram públicas. Tendo o caso ficado batizado pelo segundo como ‘irritante’.
Foi, mas nós fizemos o nosso papel. Agimos em conformidade. Acusámos. Houve recurso mas o Tribunal da Relação de Lisboa, em relação ao vice-Presidente de Angola, teve um entendimento diferente.
Mas houve uma grande pressão, a nível político, quer do primeiro-ministro, quer do Presidente.
Eu nunca tive pressão nos meus processos, nunca. Ninguém me pediu absolutamente nada, nem me chamou a atenção para isso, mesmo na própria hierarquia. Eu combinava, muitas vezes, como acho que deve acontecer, com a doutora Joana Marques Vidal o tipo de soluções jurídicas e as estratégias a seguir. Eu propunha e, na maioria das vezes, a senhora PGR estava de acordo. Mas ela também ía ao DCIAP verificar como as investigações dos processos mais complexos ou mais mediáticos estavam a decorrer.
Como foi tomada a decisão de deter José Sócrates? Foi com a PGR Joana Marques Vidal?
Claro, foi decidido com conhecimento dela. O procurador Rosário Teixeira explicou-me os factos, o que estava subjacente e os fundamentos da detenção que constam do despacho de detenção. Face a isso, considerei que se justificava a detenção e a dra. Joana Marques Vidal foi informada e concordou.
Uma decisão inédita, pois tratava-se de um ex-primeiro-ministro. Foi uma decisão difícil de tomar?
Há muitas decisões difíceis, mas temos que as tomar. A lei é igual para todos.
Sucedeu a uma PGR que saiu muito contestada pelo poder político. Sente que está a conseguir ‘pôr ordem na casa’?
Respeito muito a doutora Lucília Gago, com quem ainda trabalhei um ano quando estive no DCIAP. Mas não tenho que emitir qualquer opinião sobre expressões da senhora ministra da Justiça.
Um poder político que diz alto e bom som que a Procuradoria precisa de ser ‘arrumada’ ou ‘posta em ordem’ não é, no mínimo, desrespeitoso?
Se fosse comigo, não gostava.
Disse, na posse, que quer trazer de volta o MP ao ‘patamar que merece’. Que patamar é esse? Acha que está descredibilizado ou em crise de reputação na opinião pública?
A credibilização ou a descredibilização das instituições depende também dos momentos. Se me perguntar se eu hoje tenho menos credibilidade do que quando tomei posse, digo-lhe que sim. E isso tem muito a ver com os atrasos dos processos mais mediáticos. Mas tenho feito tudo o que posso e tenho trabalhado muito. Acompanho o DCIAP e o vice-procurador-geral da República (Paulo Morgado de Carvalho) os DiAP regionais. Ambos tentamos imprimir uma maior celeridade nos processos. E, ao nível da simplificação, e com vista a diminuir o número de processos que estão pendentes temos, neste momento, a intenção de alterar o planeamento das inspeções de forma a valorizar os magistrados que profiram despachos curtos e claramente percetíveis para o cidadão. Mas a verdade é que temos falta de meios, nomeadamente, ao nível dos oficiais de justiça. Foi feita a apresentação das inspeções aos serviços, ao DCIAP, aos DIAP, às Seções Especializadas Integradas de Violência Doméstica (SEIVD), e concluiu-se, nomeadamente, que havia muitos processo parados, despachos finais que não são cumpridos. Mas, mesmo em relação aos processos mais antigos como, por exemplo, o do Joe Berardo/Caixa Geral de Depósitos, do Tutti Frutti, já houve acusação. Mas há processos de grande complexidade, muitas vezes dependentes de cartas rogatórias, dos OPC, de perícias, de análise de prova digital muito vasta e de outras razões, como recursos cuja pendência condiciona o ritmo da análise da prova.
A operação Influencer já tem anos. Parece não haver coragem para decidir que não há factos suficientes para deduzir uma acusação. Houve processos em que fixou prazos-limite às investigações. Vai fazer o mesmo neste caso ou não vê razão para isso? Em novembro, passam já dois anos desde a operação de buscas e a demissão do então PM.
Algumas pessoas podem ficar com essa ideia. Da minha parte sempre disse que, para dar um despacho final, é preciso reunir toda a prova. Na operação Influencer existe muitíssima documentação que foi apreendida nas buscas e ainda não foi toda analisada. Ao contrário do que acontecia no passado, em que a prova era essencialmente em suporte de papel, hoje, nestes processos complexos, é quase toda informática. Umas vezes já vem em suporte magnético, noutras temos de a digitalizar e analisar. Entretanto, a Polícia Judiciária (PJ), por minha solicitação, criou uma estrutura para fazer as digitalizações da informação apreendida em suporte de papel. Mas o caso Influencer não é o único. Não temos meios para analisar toda a prova ao mesmo tempo. Portanto, tem de haver uma maior coordenação com a PJ em relação às ferramentas de pesquisa digital e o caso Influencer confirma o que acabei de dizer: está em análise a prova documental obtida nas buscas e a demais entretanto obtida por intermédio de diversas solicitações a entidades públicas.
Em relação à prova digital importa sublinhar que, dos cerca de 150 (cento e cinquenta) dispositivos apreendidos (telemóveis, computadores, tablets, suportes de armazenamento) totalizando cerca de 20 TB de informação (terabytes), mais de 120 (cerca de 15 TB) estão em fase final de tratamento técnico – procedimentos de cópia e indexação. O tratamento dos restantes está dependente de prévias questões jurídicas e demandou procedimentos técnicos anteriores (separação de correio eletrónico). Estão pendentes de decisão 4 recursos. Num desses recursos está em causa o acesso a prova digital a equipamento informático, estando a análise da prova dependente da decisão desse recurso interposto por arguidos.
Mas o diretor da PJ gaba-se de ter tantos meios?
Não sei se tem os meios todos ou se já os têm totalmente estruturados para os disponibilizar. Mas, antes das férias judiciais, o diretor ficou de me entregar documentos estratégicos para melhorar a colaboração, nomeadamente com o DCIAP. É isso que eu quero e é o que está combinado.
Portanto, António Costa continua sob suspeita?
Não falo de processos concretos. Mas a PGR já deu informações quanto a esse assunto.
Teria feito como a sua antecessora e incluído o parágrafo sobre o ex-PM no comunicado sobre a operação Influencer?
Acho que nem me ficaria bem pronunciar-me sobre essa matéria.
E o facto de alguém estar sob escuta durante quatro anos, acha aceitável?
Em termos de princípios, não será adequado nem aceitável. Mas temos de analisar as circunstâncias concretas dos processos onde isso acontece. A verdade, penso eu, e qualquer jurista dirá o mesmo, é que o MP propôs as escutas e fundamentou-as para poderem ser aceites pelo juiz. E foram.
Estamos a falar de João Galamba, um dos suspeitos da Operação Influencer.
Não estava cá na altura e desconheço o que levou o MP a solicitar as escutas e a sua prorrogação. Mas isso está no requerimento do MP e no despacho do juiz. Mas nós temos feito um esforço para minimizar situações dessa natureza. Temos referido isso aos magistrados. E, sim, acho que estar sobre escuta quatro anos é excessivo.
MP já leva 6 meses com a averiguação preventiva ao caso do PM, a Spinumviva. Como é que se demora 6 meses só para analisar se há ou não razões suficientes para se abrir um inquérito? Não é se há crime ou não, é apenas decidir se há indícios suficientes para um inquérito. Por que não houve coragem para abrir então logo um inquérito? E que ‘meios’ extra, como disse esta semana, é que podem ser necessários apenas para uma AP?
O que eu disse há dias é a realidade. Mas não acredito que isso seja necessário. A informação que tenho é que existe muita documentação e, esta semana, o DCIAP pediu mais documentação (ao primeiro-ministro).
Como lhe perguntei, não se trata de saber se há crime ou não, é apenas decidir se há indícios suficientes para um inquérito!
Eu queria que tivesse terminado antes de férias. Para a semana vou fazer o ponto de situação com o diretor do DCIAP sobre vários inquéritos, indagar as razões da demora e a justificação. Acho isso legítimo, é aliás a minha obrigação. Mas já fui criticado por isso. Agora, eu não dou, efetivamente, instruções concretas em AP ou em inquéritos.
Ainda tem esperança numa reforma da Justiça?
Não se pode perder a esperança quanto a isso. Mas tem de haver consenso em relação às grandes e mais importantes medidas consideradas necessárias.
Quais são as medidas mais urgentes?
Deve-se dar, desde logo, aos juízes um poder efetivo de direção da instrução e dos julgamentos com alguma autoridade, para ser respeitada a sua estratégia de produção da prova. Isto com vista, essencialmente, a evitar o alongamento do tempo dos julgamentos. E, eventualmente, ser mais pragmático no que diz respeito à dispensa de prova em julgamento. Isto se houver, claro, acordo entre MP, arguidos e assistentes para facilitar a produção de prova. Foi introduzida em 1987, uma alteração que se revelou muito frutuosa. Que é a confissão integral, espontânea e sem reservas, que permite ao arguido, em julgamento, fazer a confissão total dos factos de que vem acusado pondo assim fim ao julgamento e conseguindo alguns benefícios na medida da pena. Devia ser ponderada, claramente, a aplicação do artigo 670.º do Código de Processo Civil (que permite punir manobras dilatórias para evitar que o julgamento seja protelado de forma ilegítima) ao Código de Processo Penal. Ou, então, uma norma similar mas com poderes para sancionar estas manobras dilatórias. Há já um grupo de magistrados do MP a trabalhar sobre estas questões, que apresentará brevemente as suas conclusões. E há ainda outra questão que tem de ser equacionada, que é, nomeadamente, nos recursos para o Tribunal Constitucional: dar-se a possibilidade ao juiz de fixar ao recurso efeito meramente devolutivo quando verificar que o recurso visa, apenas, retardar o trânsito em julgado da decisão. Mas isto é uma decisão que tem de ser tomada no Parlamento. Eventualmente, também, facilitar as situações de depoimentos através de videoconferência ou ponderar as regras para notificações através de correio eletrónico.
Tudo isto porque nunca tivemos um processo tão encalhado a esse nível como na Operação Marquês?
Todos nós conhecemos o processo, não vou fazer mais comentários sobre a Operação Marquês. Está a decorrer o julgamento, deixemo-lo correr.
Acha que se devia voltar a discutir a criação do crime de enriquecimento ilícito ou não?
Não. Penso que esses aspetos podem ser resolvidos através do sistema da recuperação de ativos ou da perda alargada e, em função do património que as pessoas apresentam, permitir a perda em relação ao património incongruente. Nomeadamente, devia de se ponderar se os aspetos da incongruência se podem aplicar também no caso do falecimento dos arguidos em que existe património ou em situações em que há pessoas que não são julgadas por não se encontrarem no país mas que têm o património apreendido. Mas isso é uma questão que tem de ser o Parlamento a resolver.
Qual é a criminalidade que mais o preocupa?
O que me preocupa mais em termos de impacto social, e falei sobre isso na minha tomada de posse é, essencialmente, a criminalidade ligada à violência doméstica, pessoas que vivem uma vida inteira sem liberdade; os maus tratos relativamente a idosos que, aliás, retirei da alçada do DCIAP, porque entendo, por uma questão de proximidade, que os factos devem ser investigados nas comarcas. Propus a criação de comissões de proteção de idosos. E acho que toda a sociedade se deve unir nesse sentido. Finalmente, as redes de crime violento, o terrorismo para salvaguardar a segurança das pessoas, a criminalidade económico-financeira que nos toca a todos, prejudica o Estado, a cidadania e o bem-estar social.
Os magistrados do MP fizeram greve em julho passado e foi a primeira vez que o fizeram como protesto contra uma decisão da hierarquia, neste caso sua, que desempatou a decisão do Conselho Superior do MP (CSMP) a favor de um polémico movimento de colocação magistrados que determina a acumulação de funções em muitas comarcas, pondo aqui em suspenso a especialização de magistrados em áreas de trabalho. Não sente que, como PGR, perdeu a confiança das suas ‘tropas’?
Decidi dessa forma por várias razões. Primeiro, por respeito pelo grupo de trabalho que fez o projeto de movimento após reuniões com os procuradores regionais, tendo-mo apresentado. Depois, porque, no meu ponto de vista, as soluções encontradas permitem que seja assegurado um maior equilíbrio entre a atividade dos magistrados. Devo dizer que a razão fundamental que o sindicato invoca para a greve é o que nós andávamos há muito a escrever e a decidir no Conselho: a falta de magistrados. O problema é esse! Agora, temos perspetivas diferentes de como resolver as dificuldades. Entendeu-se que em algumas comarcas era possível fazer agregação de funções. Mas o primeiro problema é a falta de magistrados e nós falámos com a senhora ministra da Justiça para se fazer um curso especial. O que nos foi dito é que o CEJ não tem capacidade para fazer isso neste momento, porque está programada, agora em fase de provas de admissão, a realização de um curso normal para magistrados do MP e dois para juízes, um para os tribunais judiciais e outro para os tribunais administrativos e fiscais. O curso especial, a ser realizado, só traria magistrados daqui a um ano ou ano e meio. Como isso não foi possível, o Conselho pediu à senhora ministra que encurte o estágio dos magistrados que estão agora em regime de estágio nos tribunais 40.º e 41.º. Estamos à espera, mas penso que há disponibilidade para isso. A programação e planeamento dos magistrados necessários devem ser feitos a longo prazo. Vou apresentar até ao fim deste ano ao Conselho Superior do Ministério Público, para ser enviado ao Ministério da Justiça, um documento com o levantamento dos magistrados que se vão jubilar até ao final de 2030. E uma comparação com os lugares vagos nos diversos tribunais, fazendo uma contabilização das necessidades. É preciso ver que há magistrados que estão em funções fora dos tribunais, em diversos órgãos – como a Procuradoria Europeia, a Eurojust, a Comissão Nacional de Proteção de Dados… O MP tem competências vastíssimas. Por exemplo, o estatuto do maior acompanhado veio trazer um acréscimo imenso aos magistrados do MP. Outro exemplo: as Secções Especializadas Integradas de Violência Doméstica também alargaram as necessidades quanto ao número de magistrados em comparação com a estrutura anterior. Portanto, eu reconheço que os magistrados estão cansados, podem estar desapontados, mas podem ter a certeza que nós temos feito tudo o que é possível para melhorar a situação.
Neste primeiro ano, em funções, qual foi o momento mais difícil? Ou qual foi a tarefa que se tem revelado mais complicada?
Foram esses aspetos do movimento. Tive de refletir muito sobre as questões, sempre no interesse dos magistrados e do Ministério Público/Procuradoria-Geral, porque verifiquei que íamos iniciar o mês de setembro com menos magistrados do que precisamos e, além do mais, sem perspetivas temporais de reforço do número de magistrados. A greve preocupou-me e, como não foi possível evitá-la, penso que foi uma situação complexa e difícil. Até porque foi referido que eu não conhecia a situação das comarcas – e isto depois de eu ter percorrido 25 mil quilómetros, entre novembro de 2024 e julho de 2025, de ter visitado todas as comarcas, sem exceção, e de ter uma panorâmica geral de todas as comarcas e das dificuldades. Portanto, foi difícil.
Foi também procurador-geral-distrital de Lisboa, em 2019, até se jubilar. E agora PGR. Aos 70 anos, o que pode dizer que a vida lhe ensinou?
A vida ensinou-me que é preciso muito trabalho para conseguirmos fazer aquilo em que acreditamos. E que, mesmo prejudicando a família, temos de dizer sim à profissão que abraçamos. Os seis anos do DCIAP foram muito complicados em termos familiares. Não contente com isso, ainda vim parar a mais um desafio destes, que efetivamente é trabalhoso, muito complexo. Mas cá estou.
E o que faz nos tempos livres?
Muito pouco. Exercício físico, caminhadas, ginásio quando posso, muito cedo. Gosto de cozinhar…
Sabia que era um bom garfo, mas desconhecia os dotes culinários. Que pratos gosta de fazer?
(risos) Pratos simples: feijoadas, umas favas, um bom cozido, um bom arroz de marisco, um leitão metido num forno de lenha… Um cabrito também é bom!
Tudo coisas simples!
Mas o que gosto mais é de estar com as minhas netas. Tenho duas netas incríveis. Quando estive jubilado, acompanhava-as muito, sobretudo à mais velha.
Que idade tem?
Quatro anos. Ia buscá-la cedo ao colégio, levava-a ao jardim ou para os baloiços da Mata de Benfica. Falávamos muito.
Não me diga que tentou convencê-la a ser polícia das estradas?
(risos) Não. Mas ela tem uma admiração especial pelos polícias e, às vezes, quer ver os meus seguranças. Quando terminaram as férias judiciais, na posse, apareci na televisão de toga. Nessa noite, disse-me logo que eu estava com um vestido preto e um colar muito bonito. As crianças têm saídas muito interessantes.