“Com este quadro, o PS tem condições para formar Governo, mas têm de perguntar ao PS”. A frase foi dita a 4 de outubro de 2015 por Jerónimo de Sousa, em plena noite eleitoral, e abria um cenário que ninguém tinha antecipado: uma maioria parlamentar para derrubar o recém-eleito Governo PSD/CDS e mudar a página da austeridade, o grande mote à época.
Nos dias seguintes, concretizava-se uma solução governativa inédita em democracia, com uma moção de rejeição ao Programa do Governo, que entra em gestão e dura 27 dias, o período mais curto desde o 25 de Abril.
“Não foi uma solução de recurso”, disse ontem António Costa numa Assembleia da República onde só o PS aplaudia de pé, recordando que já em 2014, tinha defendido o fim do “arco da governação” e que os partidos à esquerda tinham a responsabilidade de ser mais do que partidos de protesto.
A geringonça nasce com acordos escritos firmados a 10 de novembro de 2015 entre o PS e o BE, PCP e Os Verdes. Sob esse chapéu, o Governo reverteu a privatização da TAP, repôs as 35 horas de trabalho na função pública, aumentou o salário mínimo (em 2015 era de 505 euros e está agora nos 665 euros), reforçou o financiamento do Serviço Nacional de Saúde em perto de 3 mil milhões de euros depois do emagrecimento nos anos da troika.
Ontem, António Costa foi mais longe e sublinhou que o crescimento económico dos últimos anos não teve paralelo, dizendo ter orgulho dos últimos seis anos. “Nasci à esquerda, fui criado à esquerda e a esquerda é a minha família. Acredito que a esquerda tem todo o potencial para construir o futuro e que não está condenada ao protesto e que pode ser o Governo equilibrado e responsável que é capaz de transformar o país”, afirmou.
Mas a esquerda que sustentou o Governo na primeira legislatura há muito que não estava no mesmo comprimento de onda. Se nos primeiros quatro anos de geringonça os quatro Orçamentos do Estado (2016, 2017, 2018 e 2019) contaram com o pleno de votos a favor do BE, PCP, PEV e PAN, desde 2019, quando deixou de haver acordos escritos e a geringonça entrou em suspenso, já nenhum passou com votos a favor de BE e PCP.
Em 2020, no rescaldo das eleições que deram maioria ao PS mas penalizaram nas urnas PCP e BE, o Orçamento passou já à custa de abstenções. Em 2021, com o país virado de avesso com a pandemia, o BE votou contra. E à terceira foi de vez, com acusações mútuas de intransigência e com PCP e BE a voltarem quase ao mantra inicial, de que só não houve Orçamento porque o PS não quis. “O Governo passou dois dias a repetir que este é o OE mais à esquerda de sempre. A frase é tão oca que até a direita a repetiu”, disse Catarina Martins, falando de um investimento “anémico” que não trava a deterioração do SNS nem a perda de poder de compra para a generalidade dos salários e pensões.
“Estas escolhas não têm nada de esquerda, nem são resposta aos problemas do país. E são inexplicáveis, porque o momento devia mesmo ser de mudança”, continuou, parecendo definitiva. “A geringonça foi morta pela obsessão pela maioria absoluta”.
E isso não aconteceu ontem, na visão do BE, mas em 2019. “A solução política para arrancar o governo das mãos de Passos Coelho e Paulo Portas e devolver rendimentos aos portugueses chegou ao fim com as eleições legislativas de outubro. Após reunir com os partidos da esquerda nos dias seguintes à eleição e de ter recebido do Bloco uma proposta para reeditar um acordo político para os próximos quatro anos, o PS decidiu rejeitar a proposta e assumir um governo minoritário dependente de acordos pontuais para garantir maiorias”, escrevia o Esquerda.net em 2019.
Nesse ano, também o PCP desgastado nas urnas, onde teve um rombo maior que o BE (perdeu 113 mil votos), preferiu o apoio caso a caso. “Sim, fomos mais estáveis”, disse António Costa, guardando a visão positiva mesmo no cortejo fúnebre do OE e, com ele, de seis anos de governação marcados por tragédias como os incêndios de 2017, a luta contra uma pandemia de proporções inéditas no último século e momentos altos como a presidência da UE.
Otimismo não, confiança, assinalou Costa, aludindo ao rótulo de “otimista irritante”, que não lhe foi colado pelos partidos descontentes com o jeito de negociar do PS mas pelo Presidente da República em março de 2020, numa leitura psicanalítica num programa de Ricardo Araújo Pereira, estava a rebentar a pandemia.
“O aspeto positivo é a sua resistência física e psíquica. Agora qual é a outra face da realidade? É que o irritante maximiza os cenários favoráveis e minimiza a hipótese de cenários desfavoráveis. Tudo tem um preço”, sinalizou na altura Marcelo Rebelo de Sousa que insistiu e insistiu em estabilidade e logo em 2016, após tomar posse, assumiu que a estabilidade da geringonça naquele primeiro ano tinha superado as expectativas.
Como insistiu em pactos alargados por exemplo na Saúde e na Justiça – reptos que deixou cair neste segundo mandato – e tentou afastar ao máximo o cenário de crise política, a ponto de até aos últimos minutos ainda se esperar um qualquer volte-face na votação no Parlamento, que após horas de intervenções se resolveu em segundos. Com o presidente da Assembleia da República a assinalar, como se fosse só mais um dia na vida da AR, que havia outras deliberações na ordem de trabalhos.
Mas o debate já não estava ali, mas no que se seguirá, com o cenário de convocação de eleições antecipadas em cima da mesa. Se o clima parece o menos propício a isso à esquerda, o esqueleto de geringonça foi ressuscitado ainda ao final do dia por Augusto Santos Silva, que, descartando a ideia de um bloco central, considerou ser possível repetir a solução, em função do que vierem a ser os resultados, sendo de admitir, depois do precedente dos últimos seis anos, em qualquer sentido: “uma maioria da direita que ‘facilmente se entenderá’, uma maioria do PS ou uma coligação com o PAN, ou ainda uma ‘situação parecida com a atual’, que obrigará a negociações”, disse.
Marcos
10 de novembro de 2015
O PS assina acordos de governação com Bloco de Esquerda, PCP e Os Verdes. Nascia a geringonça, assim cunhada por Paulo Portas. Juntos, votam a favor da moção de rejeição do programa do PSD/CDS apresentada pelo PS, aprovada também pelo PAN. O Governo de Passos Coelho cai ao fim de 10 dias, deixando um legado: a privatização da TAP. Nasce a geringonça, assim cunhada por Paulo Portas: “Não é bem um governo, é uma geringonça. Não é uma coligação, isso já se viu. Tão pouco será um acordo porque haverá vários”.
26 de novembro de 2015
Cavaco Silva dá posse ao XXI Governo Constitucional. “O Governo que hoje toma posse não é um Governo temeroso do futuro”, diz António Costa, falando de um “Governo confiante”.
6 de fevereiro de 2016
Governo chega a acordo com o consórcio Atlantic Gateway e reverte a privatização da TAP, assumindo 50%, uma das bandeiras do novo Governo.
2 de junho de 2016
O Parlamento aprova o regresso às 35 horas de trabalho para a função pública, num dos momentos mais emblemáticos de revogação das medidas da troika mas logo aí o BE insiste na necessidade de o alargar a todos os contratos individuais – o primeiro braço de ferro com Centeno – o que viria acontecer em 2018.
Dezembro de 2016
A redução da TSU para as empresas, prevista para o OE de 2017, abre nova guerra à esquerda. Catarina Martins revelaria em 2018 que, até então, só neste ponto a geringonça estivera em risco de ruir. A medida acabaria chumbada na AR em janeiro de 2017, com o voto contra do BE, PCP, PEV e PSD.
Junho de 2017
A tragédia de Pedrógão Grande deixa o país em choque. Morrem 66 pessoas na noite de 17 de junho.
Outubro de 2017
É conhecida acusação de José Sócrates na Operação Marquês. Dias depois, a tragédia que não se podia repetir repete-se: incêndios na zona de Oliveira do Hospital fazem 50 mortes. Dias depois, as armas roubadas em Tancos aparecem na Chamusca, no início de um dos casos mais rocambolescos dos últimos seis anos e que levaria, um ano depois, à demissão do ministro da Defesa Azeredo Lopes, constituído arguido no processo.
Novembro de 2018
Forma-se uma coligação negativa com PSD, PCP e Bloco de Esquerda para chumbar decreto-lei sobre tempo de serviço dos professores (dois anos, quatro meses e 18 dias). Está aberta a crise dos nove anos, quatro meses e dois dias, que levaria em maio de 2019 o primeiro-ministro a garantir que se demitiria se a recuperação total do tempo de serviço congelado no tempo da troika fosse viabilizada na AR.
Maio de 2019
A crise acaba com o PSD e o CDS a votar contra o texto que tinham aprovado em comissão. “Uma vitória da responsabilidade”, disse na altura António Costa. A geringonça empana. Depois de uma manchete anunciar que, depois das legislativas, o Governo recusa voltar ao dossiê professores, Catarina Martins endurece o discurso: “A arrogância não é boa conselheira, é bom que o Partido Socialista se lembre”. O PCP também deixa avisos e fala de uma operação de pressão e de chantagem do Governo.
Julho de 2019
O Parlamento aprova a nova lei de Bases da Saúde, depois de aproximações à esquerda no texto final que resultam em mal-estar interno no PS com críticas da antiga ministra da Saúde Maria de Belém, que coordenara os trabalhos iniciais para rever a lei. Medidas como a dedicação plena no SNS iriam ser agora concretizadas no OE de 2022, aquém do exigido por BE e PCP.
Outubro de 2019
O PS ganha as legislativas (36,34%) mas não reedita os acordos de 2015 com os partidos à esquerda. O PCP, que já em 2015 disse que não seria “muleta” do Governo, perde mais votos do que o BE e baixa, em conjunto com os Os Verdes, de 17 para 12 deputados. BE mantém 19 deputados e faz uma proposta para acordo escrito, rejeitado. À pergunta quem matou a geringonça, a resposta à esquerda passa a ser o PS. O OE 2020 é aprovado com as abstenções de BE, PCP, PAN, PEV, já com ameaças para o OE seguinte.
2 de março de 2020
São confirmados os primeiros casos de covid-19 no país, o início de vai para dois anos de pandemia, estados de emergência, confinamentos e políticas setoriais em suspenso, com altos e baixos na popularidade do Governo e nas críticas da oposição. O OE de 2021 já só passa porque o PCP se abstém: o BE não cede e vota contra. O terceiro OE da legislatura já não passou.