Por Marta F. Reis e Sónia Peres Pinto
Os olhos estão hoje postos no Parlamento, onde decorre o debate do Estado da Nação. O Governo tomou posse há pouco mais de três meses, mas a oposição não perdoa e aponta para os sinais de desgaste. Um olhar diferente tem o líder parlamentar socialista, que considera que o país vive um “estado de esperança”, com crescimento económico e uma baixa taxa de desemprego, acenando com vontade de diálogo nesta legislatura. No entender de Eurico Brilhante Dias, essa é “uma marca genética desta maioria absoluta”.
Mas, apesar das críticas previsíveis do lado dos partidos, há que contar com temas que não irão escapar neste debate político: desde a saúde à situação crítica dos incêndios, passando pelos problemas da falta de professores, ao episódio da localização do novo aeroporto, sem esquecer os temas económicos. Se, por um lado, Bruxelas anima com os dados do crescimento da economia, por outro lado, a inflação e a possível taxa de juros poderá assombrar a governação socialista.
Há que contar ainda com a última sondagem da Universidade Católica: se houvesse agora eleições, PS e PSD ficariam separados por apenas oito pontos percentuais. Desde as legislativas de 30 de janeiro, o PS caiu para 38% nas intenções de voto dos portugueses, abaixo dos 41,37% que deram a António Costa a sua primeira maioria absoluta. De acordo com a sondagem do Centro de Estudos e Sondagens de Opinião (CESOP) para a RTP, Antena 1 e Público, os sociais-democratas são a força política que mais sobe, atingindo os 30%.
Mas isso não parece desanimar o PS. “Há um partido que está sempre ao lado dos portugueses e há um Governo que tem estado preparado para todas as incidências”, garantiu Eurico Brilhante Dias.
Oposição
O PSD vai entrar neste debate com novo líder: Luís Montenegro, apesar de não ter assento na Assembleia da República. Mas em contrapartida conta com novo líder parlamentar que já assumiu que vê o estado da nação com “muita preocupação”, acusando o Governo de estar “desorientado” e “desorganizado” e de ser incapaz de “promover reformas estruturais” ou de resolver “problemas conjunturais” do país. Joaquim Miranda Sarmento não hesita: o Executivo “tem todas as condições de governação: tem uma maioria absoluta, tem o Plano de Recuperação e Resiliência (PRR) que o primeiro-ministro, durante mais de um ano, vendeu como a grande ‘bazuca’ que ia resolver os problemas do país, e tem um ambiente institucional de colaboração com os outros poderes”.
Miranda Sarmento diz que, apesar de todas estas condições, o Governo não tem sido “capaz de promover as reformas estruturais para resolver os problemas graves que o país tem”, nem de “resolver aquilo que são problemas mais conjunturais, mas que afetam o dia a dia dos portugueses de forma muito significativa”.
Os mesmos argumentos deverão ser repetidos pelo Chega e pelo Iniciativa Liberal. O partido liderado por João Cotrim Figueiredo tem defendido que o estado da nação é “preocupante”, acusando o Governo de não “antecipar, planear e resolver” os problemas e de ter “desistido de fazer reformas”, preferindo “fazer remendos”.
E faz um raio-x aos problemas da sociedade portuguesa, que vão desde áreas como a saúde, educação e transportes até à resposta aos incêndios, onde, no seu entender, “se assiste “a uma degradação exatamente porque não se antecipa, não se planeia, não se resolve”. Dando também cartão vermelho à execução do PRR e alertando para situações como a “do programa de recapitalização estratégica”.
Também o líder parlamentar do Chega tem defendido que o país está numa “situação extremamente difícil”, acusando o Governo de ser “frágil e fraco” e de “não precaver” situações como os incêndios, “o caos na saúde” ou nos aeroportos.
Pedro Pinto já veio pedir que se “retirem responsabilidades políticas” da atual situação e classificou o balanço dos primeiros 100 dias do Governo – que se assinalaram a 8 de julho – de “muito, muito negativo” e “deixa Portugal em muito perigo”.
Em situações mais frágeis estão o PCP e o Bloco que, na anterior legislatura, apoiavam o anterior Governo. E também da esquerda as críticas não são poupadas. De acordo com o PCP, a atual situação nacional é “marcada pelo agravamento das condições de vida dos trabalhadores e do povo”, acusando o Governo de não resolver os problemas e favorecer os “interesses dos grupos económicos”. A líder parlamentar comunista é dura: “A situação nacional no nosso país está marcada pelo agravamento das condições de vida dos trabalhadores e do povo, pela perda de poder de compra. A taxa de inflação continua a aumentar de forma galopante, (…) os preços de bens essenciais continuam a subir, os salários e as pensões dão para cada vez menos”, afirmou Paula Santos.
Uma opinião partilhada pelo líder parlamentar bloquista, ao acusar o Governo de “empurrar com a barriga” as soluções para os “problemas estruturais do país”, considerando que “uma pequena elite está a beneficiar”, enquanto o povo sofre com esta governação.
Segundo Pedro Filipe Soares, “há problemas estruturais que estão hoje a afetar a vida das pessoas que deveriam ter sido acautelados, prevenidos e, de certa forma, até dirimidos, e o Governo tem-se escudado sempre quando chega o momento de tomar decisões”.
Por dossiês, eis alguns dos elementos que marcam a atualidade debate que vai encerrar a sessão legislativa, com os os eputados a ir de férias a partir de 29 de julho.
Incêndios
Até esta segunda-feira ao final do dia já tinham ardido 55.925 hectares no país este ano, que com este balanço já superou a área ardida de 2021 e deverá ser mesmo o pior desde 2017. Contam-se quatro mortes. Críticas à floresta desordenada e à demora no cadastro dos terrenos – só estão registados meio milhão de parcelas em 8 milhões estimadas, com o Governo a alargar o processo simplificado que começou como projeto-piloto e ainda só chegou a metade dos concelhos do país – já se têm feito ouvir da oposição e são esperadas de novo. O Governo tem posto a tónica na mão humana que causa a maioria dos fogos, mas falhas nos drones de vigilância são outros dados públicos.
Saúde
A crise nas urgências obstétricas e o agravamento da falta de médicos de família, com mais de cem novos especialistas a optar por abandonar o SNS no último concurso, são alguns dos temas que têm dado dores de cabeça na avenida João Crisóstomo. O novo estatuto do SNS, que garante mais autonomia e levará à criação de uma direção executiva do SNS, foi um passo, mas questões como a dedicação plena ainda não estão concretizadas e a oposição à esquerda tem sido dura no que toca ao estado do SNS. O PCP acusa o Governo de permitir “deliberadamente a degradação do SNS”. Os anunciados investimentos do PRR e planos a médio prazo não serenam críticas e preocupações, em anos que serão de pico de reformas por exemplo de médicos de família. No final de maio, havia quase 1,4 milhões de utentes sem médico, quando no início do ano eram 1 262 772, e com a previsão de mais médicos a sair do que a entrar o cenário não é ainda de melhoria da cobertura. A situação orçamental do SNS também não está famosa, com a despesa a aumentar, a inflação no horizonte e o reforço orçamental, que já prevê um défice de 1100 milhões no fim do ano, a correr o risco de desvanecer-se. Até maio, o SNS registou um défice de 444,8 milhões de euros, uma deterioração de 68 milhões de euros face ao período homólogo, segundo a DGO. Ontem ao fim do dia ficaram fechadas duas pastas: o Governo anunciou a adjudicação da construção do novo Hospital de Lisboa Oriental, esperado há anos e cuja inauguração chegou a ser apontada para 2023, depois de o concurso ter sido lançado em 2017. O conselho de ministros fechou também uma solução por seis meses para as urgências: os hospitais vão poder contratar médicos dos quadros para turnos adicionais nas urgências, o que até aqui só podiam fazer a tarefeiros de fora, pagando-lhes até 70 euros à hora nos casos de maior sobrecarga horária.
Educação
As reformas dos professores são também um dos pontos críticos para o novo ministro João Costa: em contagem decrescente para o próximo ano letivo, o Governo já aprovou medidas excecionais para a colocação de professores no ano escolar 2022-2023, alargando a possibilidade de renovação dos contratos aos docentes com horários incompletos. Mas os docentes estão a fazer contas à vida e desfecho incerto, pois aceitar essa renovação para alguns pode significar perderem oportunidades melhores por exemplo em mobilidade interna. As médias dos exames nacionais desceram este ano como já tinham descido nas provas de aferição do 9º ano. O PCP pede que acabem.
Aeroporto
Um dos temas em destaque no debate de hoje será sem dúvida o episódio aeroporto. Luís Montenegro já veio criticar António Costa pela ineficiência e descoordenação política deste dossiê. Em causa estava a nova solução aeroportuária para Lisboa que, segundo Pedro Nuno Santos, passava pela construção de um novo aeroporto no Montijo até 2026 e por encerrar o aeroporto Humberto Delgado, quando estivesse concluído o de Alcochete, em 2035. Uma solução chumbada horas depois pelo primeiro-ministro, que promete reunir-se nos próximos dias com o líder do PSD – portanto antes das férias – para falar sobre a localização do futuro aeroporto, mas já sob um aviso por parte do partido social-democrata: apesar de estar disponível para se sentar à mesa com o Governo, já afirmou que o ónus da indefinição não pode estar nos sociais-democratas. “O Governo em sete anos não decidiu a questão do aeroporto”, disse, reforçando que a decisão final está nas mãos do Governo. “Está a querer transportar ónus da decisão para cima do PSD, mas decisão é sua.”
E a questão do aeroporto transporta ainda para os problemas relacionados com os constrangimentos do aeroporto da Portela. Voos cancelados e malas perdidas têm sido o prato do dia neste verão para quem viaja. Uma situação a que não têm sido poupadas críticas. Ainda assim, o ministro da Administração Interna garantiu ontem que se registou “uma descida significativa” dos tempos de espera nos aeroportos em junho e na primeira quinzena de julho, passando de cerca de duas horas para menos de 60 minutos. “Relativamente aos aeroportos, deu-se cumprimento à execução do plano de contingência e no prazo previsto alocaram-se os meios humanos de reforço, tendo sido possível observar ao longo do mês de junho e na primeira metade do mês de julho uma descida significativa das médias dos tempos máximos de espera dos passageiros, de cerca de duas horas para um valor abaixo dos 60 minutos”, disse José Luís Carneiro.
Descentralização
Mais arrumado parece estar o dossiê da descentralização, com fumo branco entre o Governo e a associação de municípios. Mas do papel à prática há ainda um longo caminho. “O processo de descentralização tem corrido mal e tem sido muito lento, tivemos três anos até atingir este acordo mínimo”, desvalorizou ontem Montenegro.
Inflação
Uma das dores de cabeça do Governo e que deverá ser alvo de debate será o tema da inflação e suas consequências para a carteira dos portugueses. Ontem, o PSD acusou o Estado de “ganhar dinheiro com o aumento da inflação” e de estar a “arrecadar mais receita fiscal do que aquela que tinha estimado” como consequência direta dessa realidade. “O estado da nação é grave, é um estado em que estamos a empobrecer, estamos a sofrer na pele os efeitos da falta de transformação e reformismo em Portugal”, disse o novo líder da oposição, destacando que a inflação já estava a subir antes da guerra na Ucrânia e que, por essa altura, já existia “um caos completo nos serviços públicos essenciais”. Mas os números falam por si: o INE apontou para uma taxa de inflação de 8,7% em junho – é preciso recuar a dezembro de 1992 para encontrar um valor tão elevado. Os sindicatos reclamam aumentos intercalares e medidas de apoio imediatas para compensar a perda de poder de compra dos trabalhadores e o primeiro-ministro já apelou a aumentos salariais de 20% no setor privado – “recados” que, até à data, têm tido pouca recetividade do lado empresarial. É certo que os preços, desde os produtos alimentares às rendas da casa, passando pelas portagens, não vão escapar a este aumento.
Crescimento da economia
Do lado do crescimento da economia portuguesa, o Governo pode acenar com dados animadores. Ainda na semana passada, a Comissão Europeia reviu em alta as previsões para o crescimento do produto interno bruto (PIB) de Portugal em 2022, de 5,8% para 6,5%. Feitas as contas, Portugal acaba por ser o país da UE que mais cresce este ano, mantendo o lugar que já tinha nas projeções anteriores, sendo o único com uma projeção superior a 6%. Já para 2023, Portugal acaba por cair na tabela, registando o 15.º maior crescimento. E, tal como tem acontecido em anos anteriores, o turismo será um dos grandes motores para o crescimento este ano. “Depois de um início de ano forte, o crescimento de Portugal deverá moderar-se em termos trimestrais, mas manter-se significativo em termos anualizados”, apontou a Comissão. As projeções indicam que as exportações de serviços vão contribuir mais para o crescimento, refletindo uma expansão homóloga de 75% no primeiro trimestre do ano, que “foi claramente apoiada pela recuperação do setor do turismo”. Mas nem tudo são boas notícias: “A curto prazo, os indicadores sugerem uma desaceleração no consumo do setor privado, produção industrial e construção devido às crescentes pressões de custo dos preços da energia e restrições globais de oferta”. E diz Bruxelas: “Procura mais fraca de parceiros comerciais também deverá pesar negativamente nas exportações de bens”.