por Raquel Abecasis
Como viu a intervenção do professor Cavaco Silva na semana passada? Que impacto teve e que resultados é que acha que ele pretendeu?
Acho que o que pretendeu, principalmente, foi mostrar a diferença em relação ao atual Presidente da República. Estou a dizer a sensação que eu tive. A sensação de alguém que o conhece há 40 anos. Em 81 já corria o país com ele de um lado para o outro. As motivações político-partidárias do professor Cavaco sempre foram muito difusas e se fizermos a interpretação dos seus atos ao longo dos tempos acho que se pode deduzir isso. Aquela intervenção – este foi um tempo em que se fez muito a comparação com 2004 – fez-me lembrar a do artigo da boa e má moeda.
Mas, no artigo da boa e má moeda ele pretendia e, aparentemente conseguiu, um resultado. Aqui acha que a expectativa é a mesma? Ou seja, para além de querer fazer o contraponto com o Presidente, é para precipitar alguma coisa, alguma alteração política que ele acha necessária?
Não estou a dizer que o Prof. Cavaco Silva não é patriota ou não tem boas motivações, mas obviamente todos os líderes têm uma componente egocêntrica substancial, portanto veem a evolução do mundo em função de si próprios e da esfera de intervenção que possam ter. Acho que Cavaco Silva, em 2004, quando fez aquele artigo, queria deitar abaixo um governo para entrar um governo do outro lado, para ele poder ser Presidente da República. Sempre foi a interpretação que fiz, nunca achei que fosse outra. Aliás, acho que a evolução do tempo o demonstrou. Tínhamos eleições presidenciais daí a um ano e ele tinha a tese de que se tivesse um governo da sua cor, gostasse mais ou menos de mim ou dos outros membros do governo, isso não lhe era favorável. Até pelas minhas conversas com o Dr. Sampaio, tenho poucas dúvidas que essa foi a grande motivação. Não era tanto saber quem governava, mas ele queria ser Presidente da República. Porque isto é preciso encadear tudo, tudo tem uma lógica. Eu estou aqui na Figueira, estou aqui na minha casa, em frente à praia, a Figueira é uma cidade ribeirinha e eu lembro-me, aqui por baixo da minha casa, em 85. Estava o Marcelo, o Durão Barroso, eu e o Alberto João Jardim, aqui num restaurante, numa marisqueira chamada Tubarão. Estivemos até à meia-noite, uma da manhã, a debater os quatro se se apoiava Cavaco Silva ou não. E Marcelo não queria, ao contrário do que ele a certa altura disse. Durão Barroso e eu é que queríamos. Eu era o líder da distrital de Lisboa tinha as tropas. E disse-lhe eu: ‘Ó Marcelo, se você não avança, vamos apoiar o professor Cavaco’. E Marcelo disse: ‘Se ele ganha, fica lá dez anos’. Nunca me hei de esquecer, ele acerta normalmente nessas coisas. E eu e o Durão Barroso resolvemos avançar para esse lado, e o Marcelo e o Alberto João foram mais reticentes. Mas já nessa altura, era Cavaco/Marcelo, é curioso. Quando eu fui eleito líder do PSD, em 2004, telefonei aos antigos líderes, Cavaco e Marcelo não me atenderam o telefone. Há uma série de coincidências no tempo. Eu um dia hei de escrever um livro sobre isso. Não me atenderam sequer o telefone, o que é uma atitude absolutamente inconcebível, não é? Mas é revelador. E agora estão eles outra vez. Há ali uma rivalidade.
Mas, portanto, acha que há ali um ajuste de contas, é isso?
Em certa medida há. Não é que eles se tenham cruzado porque, quer dizer, Marcelo não poderia ser candidato quando Cavaco Silva foi, mas Marcelo contribuiu para a queda do meu governo, como se lembrará, com a história da TVI e o José Eduardo Moniz e o Miguel Anadia, com a entrevista do Rui Gomes da Silva. E o Marcelo fez uma grande cena, disse que se demitia que se ia embora porque estava em causa a democracia. O Cavaco foi a Belém falar com o Sampaio, para dizer que estava muito preocupado com a democracia. São os mesmos. É o mesmo grupo. Tem de compreender que eu veja isto com um sorriso, apesar da tristeza pelo país, com certeza que sinto e todos sentimos. Mas quando vejo estes protagonistas, riu-me, porque há uma data de anos – pronto eu também que ando mais ou menos por aqui ou por ali –, mas há uma data de anos que esses senhores determinam de facto o que se passa, principalmente no centro direita, mas no país também. E Marcelo sabia que nessa altura não podia ser candidato, portanto não foi um cruzamento direto. Marcelo nunca foi fã de Cavaco, nem Cavaco de Marcelo. E, portanto, Cavaco Silva agora, a ver o estilo de atuação presidencial de Marcelo, deve ter desmaiado várias vezes lá em casa. A ver desde o ir comer gelados, a arranjar pedras da calçada, a sair de Belém, voltar, tudo aquilo para Cavaco Silva são facadas. Portanto, há um choque grande de personalidades, de história e também uma certa disputa de liderança do espaço político com certeza. Agora que eles sabem que o centro-direita virá aí, inevitavelmente. Saber quem vai estar na origem, na base, quem contribui mais? Se for Montenegro com Cavaco, mais amigo de Montenegro ou mais padrinho de Montenegro? Marcelo estava a ajudar um bocadinho Montenegro. Cavaco chegou-se. Marcelo afastou-se. Isto são histórias, são filmes passionais ao mesmo tempo, são histórias de romances que há tantos aí. É evidente que é política, agora a política é feita por humanos, como eu costumo dizer e tudo isto são movimentações. É extraordinária a força que Cavaco ainda tem. O capital político que tem. Isso é extraordinário, ele fala e o país abana todo.
E que impacto é que acha que teve depois, na realidade da cena política, quer do ponto de vista governativo e do PS, quer também naquilo que pode condicionar a ação do Presidente da República? Porque o Presidente da República também acabou por vir já anunciar um Conselho de Estado com um mês de antecedência, ou mais de um mês de antecedência, deixando tudo um pouco em aberto?
Vou-lhe dar o meu enquadramento de base. Acho isto tudo surreal e, portanto, analiso, comento dentro desta perspetiva. Li o artigo do professor Marçal Grilo, por quem não tenho nem muita nem pouca simpatia, com o título “Estou farto”, no Público. Um artigo excelente em que ele dizia que está farto desta brincadeira toda. Está farto de ouvir notícias tão tontas na televisão, nas rádios, de ver comportamentos tão tontos. Ele até dizia: não sei se é a idade se é o cansaço, mas estou pronto para a luta. Um artigo muito interessante. Eu acho isto tudo surreal. O outro dia também ouvia Sérgio Sousa Pinto – acho que é uma pena ele ter-se inscrito no PS, apesar de ser o verdadeiro herdeiro de Mário Soares no lado bom, na minha opinião do Mário Soares, na defesa da liberdade, das garantias –, estava a ouvi-lo na televisão, e ele estava a dizer algo que é verdade, e que é a minha posição desde antes de 2004, o que eu gostava era que o Presidente ajudasse o governo. O que eu gostava é que eles compusessem a situação. A mim sempre me chocou que neste sistema semipresidencial aconteça o que escrevi no meu livro “ O pecado original – Choque entre Belém e São Bento”. Nós vivemos nisto desde sempre.
Sempre foi assim, sobretudo nos segundos mandatos exatamente…
Esquecemos sempre que somos o único país do mundo, praticamente, onde isto acontece. Porque os outros não são parlamentares ou presidenciais. Não há primeiro-ministro, nos parlamentares não há choque com o chefe de Estado, principalmente quando são monarquias, e noutros, semipresidenciais, está clarificado quem manda. Em França manda o Presidente que preside ao Conselho de Ministros. Aqui temos este baile permanente ou este combate permanente. Principalmente nos segundos mandatos como diz. É uma tristeza. Embora ache que ele exagerou, fiquei bastante contente por Marcelo Rebelo de Sousa não ter hostilizado o Governo no seu primeiro mandato e ter ajudado muitas vezes. Acho que o Presidente deve ser assim.
Mas nunca sentiu aquela queixa que a direita foi sempre fazendo, que o Marcelo andou com o governo ao colo vezes demais e…
Nunca subscrevi muito a queixa. Acho que ele exagerou algumas vezes. Mas isso é o mau hábito das pessoas quererem que o Presidente seja muleta da oposição, ou seja ele a oposição. É o que resulta desse erro original do nosso sistema. No Reino Unido, o governo é His Magesty’s Government, é o Governo do Rei. É o meu governo. E devia ser assim também nas repúblicas. É o governo do Presidente quando estão em funções, quando deixam de estar… O Presidente pode vetar, pode mandar mensagens à Assembleia da República, pode discordar disto, daquilo e de aqueloutro, agora, não pode andar…isto neste momento é uma batalha campal. Não vale a pena dizer outra coisa.
E acha que é mais por culpa do Presidente da República do que do primeiro-ministro?
Neste momento é dos dois. O Presidente teve aquele período incompreensível em que andou a falar de dissolução todos os dias. Mas desde que António Costa tomou aquela posição de manifesta afronta ao Presidente, passou a ter pelo menos cinquenta por cento da culpa e para não dizer mais. E por isso eu espero e gostava que eles fossem capazes de compor um relacionamento institucional. Agora, convocar um Conselho de Estado para julho é manter a instabilidade no ar durante não sei… não é que o Conselho de Estado tome grandes decisões, mas sabemos que quando Marcelo convoca e diz que vai ouvir os partidos…. ou agora, de cada vez que promulga um diploma faz uma nota crítica a dizer quais são os defeitos, entramos numa guerrilha institucional permanente. 24 horas por dia. E acho que é um erro. É muito mau para o país, é nocivo, é um erro. Mas é assim. Não é só em Portugal que as coisas não vão bem.
Mas aquilo que lhe tinha perguntado inicialmente, entretanto desviámo-nos na conversa é: em termos de consequências daquele discurso, acha que mudou? Contribuiu para mudar o cenário e vai definitivamente mudar o cenário? Ou não? Ou, entretanto, vai-se diluir no tempo?
Contribui de alguma maneira. Retirou menos tempo à durabilidade da situação atual. Mas eu acho que tem um triplo efeito a intervenção de Cavaco. Obriga Marcelo a ser mais duro, tira menos tempo ao governo, a Costa, cria-lhe mais exigência e dá fôlego a Montenegro.
Isso para si é uma certeza? Porque agora mesmo na imprensa de fim de semana, começa-se a ver várias opiniões dentro do PSD que dizem que, por outro lado, enfraquece Montenegro. Mesmo à esquerda também houve quem dissesse isso. Que no fundo é uma figura tutelar que enfraquece a liderança de Montenegro?
Não estou de acordo. Acho que não enfraquece. A questão de fundo, a essência, está na força de Montenegro. Se ele tem força ou não. Agora, acho que a intervenção de Cavaco não lhe tira força. Os jornais falam nos Passistas – acho que até foi no SOL – essa realidade está presente no PSD, o PSD é o PSD não vale a pena. Portanto, a questão está na força de Montenegro. Cavaco deu-lhe um aval, o que é estranho, mas deu. Acho que se dilui no tempo se Montenegro não tiver a força dele próprio. E os resultados das europeias, se isto chegar lá…
E acha que chega, ou não?
Tenho muitas dúvidas que lá chegue. Se se mantiverem estes comportamentos, não tem hipótese nenhuma de chegar…
Mas aqui a questão também é a duração da CPI?
É, o que vem aí ainda da CPI. Acho extraordinário como é que eles não antecipam os depoimentos de Pedro Nuno Santos e dos outros para acabar com este prolongar no tempo. Até parece que têm gosto. Mas, das duas uma, ou Marcelo e Costa vão passar um fim de semana à República Dominicana e compõe as coisas ou, a manter-se assim o clima, não acredito que chegue às europeias. É insustentável, a elasticidade dos sistemas políticos é limitada, e da tensão política. Os sistemas em agitação permanente que estão em convulsão – quem estuda análise sistémica, de Sartori e outros sabe isso. Um sistema não consegue fazer a retroação de tantos inputs negativos.
Aparentemente o primeiro-ministro aposta nos bons resultados da economia, que vão chegar em breve ao bolso das pessoas e, portanto, a estratégia parece ser, respirar fundo, tentar ultrapassar isto, porque depois o ciclo económico é favorável? Ainda há tempo para isso?
Normalmente é assim. Mas isto desta vez acho que há, com toda a franqueza, um desgosto coletivo profundo na sociedade portuguesa em relação ao que se passa.
É inédita esta situação? Este ambiente?
Acho que sim, acho que nunca aconteceu. Não quero usar uma palavra maçadora, aborrecida ou desagradável, mas nunca aconteceu baixar-se tanto o nível. O que se passou na Comissão de Inquérito, com um ministro – e com isto nem estou a criticar Galamba ou deixar de criticar – não pode acontecer. Um ministro estar naquela situação dos dois lados? A que horas chegou? A que horas saiu? Estava em casa ou já estava na rua? Bateu, agarrou, ou deu socos? A começar pelo próprio, o próprio nunca devia ter feito conferências de imprensa sobre aquilo. É uma coisa absolutamente inconcebível. Portanto, de facto, o nível baixou muito, muito, muito… e por isso não sei se a economia chega para dissipar a distância com que as pessoas estão hoje. E isto teve reflexo na atividade governativa. Estou aqui quase todos os dias em reuniões da CIM (Comunidade intermunicipal) e do PRR, e dos centros de saúde, e do 20-30, e estamos todos à espera de uma série de decisões que não chegam. O Governo está preocupado e o Presidente, com a situação do PRR, mas se eles viessem a reuniões das CIM’s, por exemplo, aqui à de Coimbra, viam. Isto atrasou os tempos de decisão do Governo. Mesmo a reformulação do SNS. Só tem a noção disso quem está no terreno. Empresas privadas dão aqui outros níveis de administração, como é o nosso caso. E, portanto, não sei. Tenho dúvidas que os bons resultados da economia cheguem, até porque a previsão é que não melhorem assim tanto em 2024. Pode ser que haja engano, como houve este ano e o ano passado. No ano passado falava-se em recessão e as coisas melhoraram. A inflação melhorou, a energia controlou-se. Mas não acredito. Se continuar a degradação, esqueçam.
E uma grande remodelação, pode alterar as coisas?
Já não. Há dois, três meses, defendi que o primeiro-Ministro – com alguma sanção pelo próprio – fosse convidado pelo Presidente a apresentar a demissão e depois a formar um novo Governo. Dar-lhe essa oportunidade. Agora acho que a margem é muito pequena, nomeadamente, lá está, a tal questão de pessoas que aceitem ir para o governo. Resta o governo ser capaz de acertar o passo. Se forem capazes de acertar o passo. Governar com eficácia e passar por cima do caso dos depoimentos que aí vêm da CPI. A questão é que o PS, pelo que se sabe por dentro, também está em grande convulsão…
Sim, começamos a ouvir os ditos senadores a começarem a vir pedir-lhe em voz alta…
Isso sente-se no país todo. Eu aqui, ao nível do distrito e do concelho, vejo as divisões. O PS está todo em tambores de guerra e, portanto, tudo isso tem reflexo. As variáveis de que depende a estabilização da situação estão muito conturbadas e tenho dúvidas que os resultados da economia cheguem para dissipar isso. Agora há uma coisa que pode acontecer: tudo se cansar desta situação. Vamos ver as próximas sondagens e o que dizem sobre a atuação do Presidente e também do Governo. Tem a sua influência. O Presidente, como é evidente, expôs-se. É uma hipótese que admito, é que algum deles se chegue para trás e provoque um armistício. Mas é muito duvidoso. Está a haver uma vertigem para o abismo que não sei se será parada.
Quando Cavaco decide fazer uma intervenção como aquela que fez na semana passada, pressentiu tudo isso que está a dizer e, portanto, tem noção de que vem aí uma crise e quis deixar, no fundo, a sua marca. Para que um dia mais tarde também se venha a dizer que ele teve uma influência naquilo que aconteceu?
Isso, com toda a franqueza, acho que sim. Ele é bom a prever, não só resultados económicos, Marcelo é melhor a prever política, Cavaco é melhor a prever economia. Cavaco foi sempre extraordinariamente apto a prever economia e lembro-me de – olhe outra época de inflação nos anos de 85/86 –, quando ele ganhou as eleições e fomos para o governo… extraordinário, porque ele acertava de facto. Cavaco também previu… nunca se esqueça como ele entrou. Ele entra na Figueira e ganha as eleições. Nasce o PRD. O PRD parte o PS ao meio e ele ganha com 28% ou 29% e é primeiro-ministro. Isto é extraordinário. O tal não político, nunca ninguém – eu diria – jogou tão bem política em Portugal. Passo o exagero, mas foi das pessoas que melhor utilizou, sempre, a política e a economia para atingir os objetivos que pretendia. Não tenho dúvida nenhuma disso, ele entra sempre quando acha….
E que efeito é que a intervenção de Cavaco tem no crescimento da dita extrema-direita, do Chega, etc?
Aí pode condicionar um pouco o crescimento desses setores. Porque ele dá força ao PSD, isso acho que dá. Vamos ver as próximas sondagens. Mas ele aparecer e combater, ele dá força eleitoral ao PSD. Sobre isso tenho pouca dúvida. O PSD por arrasto, talvez ao CDS, espero bem. Sou um grande defensor do regresso do CDS.
Acha que isso é possível? Só em coligação com o PSD ou não?
Acho incrível é que o CDS não tenha mais tempo na comunicação social. O CDS está nas autarquias, está no Parlamento Europeu, na Madeira, nos Açores. Por amor de Deus! Estive num pequeno partido, que não tinha tempo nenhum, mas não estava em lado nenhum. O CDS está em quase todo o lado. Agora, transitoriamente, não está na Assembleia. Mas voltando a Cavaco, ele dá muita força aos partidos tradicionais, principalmente ao PSD, e daí, retira força aos partidos mais novos que apareceram mais recentemente. Portanto, quer dizer, é difícil prever a política. Como dizia uma vez Manuela Ferreira Leite, não é como a química, não se pode fazer comprovações em laboratório e comprovar as formas se estão certo ou não. E há sempre uma incerteza. Há um risco. E quais são os efeitos das declarações de Cavaco? Foi um abalo? Não um sismo, mas um abalo político muito forte, muito forte. Não gostei da linguagem, alguma que ele usou…
Acha que foi excessivo para um ex-Presidente da República?
Foi. Acho que não lhe ficou bem. Mas fez uma excelente análise política, económica e social sobre o estado do país, nomeadamente quando diz: nunca vi descer tão baixo nalgumas situações. Isso tem razão. Chamar nomes, isso é que acho que já não… Considero é admirável o capital político que ele ainda tem. Cavaco é dos casos em que o país só lhe dá mesmo muito mais valor, no dia que ele já cá não esteja. Porque Cavaco Silva, quer se queira quer não, como se diz às vezes, fez vinte anos com quatro maiorias absolutas e o resto é conversa. É absolutamente extraordinário. Tem sempre de ter muito valor. Tenho uma mágoa grande com ele, uma divergência grande. Tenho. Não me impediu de aceitar a condecoração das mãos dele enquanto ex-primeiro-ministro. Mas acho que ele e Mário Soares são, sem dúvida, os dois grandes nomes desde há 50 anos. Para mim, para além de Sá Carneiro – Sá Carneiro viveu muito pouco tempo, infelizmente, no ativo. Mas, enquanto de Mário Soares o país gostava no geral, todo dele, à exceção das pessoas que vieram de África, com Cavaco é diferente, como se sabe… e acho que o país lhe deve um reconhecimento muito maior do que aquele que já teve. Apesar de ele não ajudar muito às vezes, de cada vez que aparece cria não sei quantas adversidades, aversões, inimizades. Mas ele é assim.
Mas também, de cada vez que aparece, mobiliza a esquerda?
Mobiliza a esquerda e mobiliza a direita. Mobiliza todos. Volto a dizer, admira-me imenso a força que ele tem e continua a ter, por muito que quem não gosta dele fique incomodado. O que é facto é que, quando ele fala, tocam os alarmes nos vários campos políticos. Não há ninguém com essa capacidade que ele tem em Portugal. Ninguém mais tem.
Mesmo antes de ele falar, a expectativa logo criada é: o que é que lá vem?
Gere muito bem o tempo político. Como ninguém. Ele é o contrário do Marcelo. Cavaco nunca fala, Marcelo quase nunca está calado e, portanto, são o contrário, são o oposto. Mas volto ao princípio. Acho que essa foi a principal motivação de Cavaco para vir a cena e isso é curioso. Ao mesmo tempo dá alguma ajuda ao Governo de Costa que ele tanto criticou. Não é a intenção dele, mas ao criticar indiretamente o Presidente, ele, nalguma medida, enfraquece um bocadinho Marcelo que teve de reagir para vários lados. O Conselho de Estado e os partidos – e até estranhei ele não ter falado em Brecht naquela frase que ele citou: ou se muda o povo, ou se muda o poder. Mas pronto, não vai parar, é assim. De facto, este episódio, esta situação da fala de Cavaco, é Cavaco/Marcelo. A questão é Cavaco/Marcelo. Se faz sentido? Talvez não. Mas às vezes as relações entre os príncipes, os condottieri, ou os membros da corte, determinam muito da evolução política. Neste caso, há um Presidente, outro ex, e acho que está na origem de muita coisa. Não se esqueça que no PSD Montenegro está a fazer pela vida, ainda. Está muita coisa em aberto. A não ser que, pelo meio, o Governo caia e a Assembleia se dissolva, porque Marcelo dissolve. O nosso sistema de governo é uma irracionalidade pura. Porque se Marcelo não tem dissolvido há um ano e meio, o Governo estava agora a acabar o seu segundo mandato. Marcelo dissolveu por causa de um orçamento. Pode acontecer chumbar um orçamento, vai lá outra vez. Fomos para eleições. O PS tem maioria absoluta e nunca mais soube o que havia de fazer com ela. Na altura discordei dessa decisão de Marcelo. Disse-o e escrevi-o. Mas é assim que estamos. Ninguém sabe porque Portugal está como o mundo, muito incerto, em guerra aberta, mas só política, graças a Deus, e com muita irracionalidade. Diria que até a economia não está em seu estado de sanidade, porque tem tido uma evolução, para melhor, inesperada. Acho que economistas e todos estão a estudar. Ainda ouvi esta semana um debate entre os presidentes dos bancos e a surpresa deles por aquilo que foi o ano de 2022. Como é possível falar de recessão e mais recessão? 2022 foi o melhor ano desde há muito tempo para as empresas. Isto está tudo em mudança. Mais a inteligência artificial, mais o blockchain, mais as moedas digitais. Vivemos nisto, e esta incerteza, ou esta volatilidade permanente, tem o seu reflexo nos sistemas políticos e, portanto, esta agitação constante tem o seu reflexo, e temos de ser capazes de nos adaptarmos a isto. É um grande desafio a capacidade de adaptação.
Ao falar agora Cavaco mostra que este é o momento certo para o PSD poder voltar para o Governo?
Estou convencido que, com o devido respeito pela sua idade – as pessoas são livres em qualquer idade, se estiverem na plena posse das suas faculdades podem ser o que quiserem –, lhe passará pela cabeça liderar tudo isto, ser líder do PSD. Nunca se esqueça que quem gosta de política e é um líder político, nunca deixa de o ser. O Mário Soares teve isso notável até ao fim. Sempre liderou, sempre comentou…
Mas acha que é um cenário possível? Que Cavaco queira mesmo entrar? Já se ouviu por aí dizer que ele se queria candidatar a Presidente, ou que havia também uma intenção de uma reentrada na política por trás disso?
Recandidatar a Presidente, nunca se sabe. Com Cavaco Silva nunca se sabe. Ele saiu com a popularidade um bocadinho mais baixa. Não acredito que ele o queira, enfim, acho que ele está de saúde e ainda bem. Graças a Deus. Também não excluo, Sandro Pertini foi Presidente em Itália com 88 anos.
Mas, entretanto, os tempos mudaram, Mário Soares tentou isso e não conseguiu?
Será que Cavaco não conseguiria se o PS se fosse muito abaixo? Vou dizer assim, e sou franco: essa hipótese eu nunca a pus desde que Cavaco falou. Estou a pô-la agora que me pôs a questão. Que ele quer ser um personagem liderante, influente no seu espaço político? Ele quer continuar a ter peso, muito peso. Agora, candidatar-se mesmo? Não o estou a ver a querer fazer campanha outra vez, mas nunca se sabe. Cavaco sempre se achou um salvador e se o país precisar, why not?
Era uma maneira de se reconciliar com a história, uma vez que saiu da Presidência da República….
Sim, porque ele saiu ali naquela altura da posse do Governo Costa. Passos Coelho não teve a maioria. Ganhou, mas não teve a maioria. Saiu com uma sensação de amargura, de azedume. E, portanto, ele adora aquilo, quer dizer, ser recebido como foi. Aplaudido como foi. Na prática, ser ele o número um, o first amoung equals. Chegar, e ser ele que se destaca…
Mas acha que isso ainda é uma realidade no país agora? Acha que o país de hoje, de 2023, ainda tem paciência para Cavaco e ainda votaria em Cavaco como votou no passado?
Acho tudo isso muito difícil, mas eu passei por muita coisa com Cavaco Silva. Vivi muita coisa boa, muita, muita, muita, muita, muitas horas em São Bento, eu e outros. E estava a ouvi-lo e é o Cavaco de sempre. Aquela maneira de olhar, aquele ar a falar. Portanto… e ele tem aquele aspeto sempre seco, não parece ter a idade que tem… agora acho que não. Acho que…não vou dizer o tempo passou. Ele ainda tem muita força, mas se a força se traduziria em votos? Não é fácil. Só se o país estivesse muito degradado. Acho que ele quer é estar descansado. Mas ser a grande referência.