“A Assembleia da República confirmou no passado dia 12 de maio, por maioria absoluta dos deputados em efetividade de funções, a nova versão do diploma sobre a morte medicamente assistida, pelo que o Presidente da República promulgou o Decreto n.º 43/XV, da Assembleia da República, tal como está obrigado nos termos do artigo 136.º, n.º 2 da Constituição da República Portuguesa”. O lacónico comunicado da Presidência da República, datado de 16 de maio de 2023, fechava assim mais um capítulo da longa história legislativa da eutanásia. As iniciativas legislativas sobre a morte medicamente assistida foram, desde 2015, alvo de dois vetos políticos pelo Presidente da República e de dois vetos por inconstitucionalidade decretados pelo Tribunal Constitucional. Tendo sido finalmente aprovada a lei com 129 votos a favor, 81 contra e uma abstenção. Este resultado ultrapassou os 116 votos necessários para o diploma passar. Para a história ficaram os votos favoráveis do PS, da Iniciativa Liberal, Bloco de Esquerda, PAN e Livre e dos sete deputados do PSD: Adão Silva, António Maló de Abreu, Rosina Ribeiro Pereira, Hugo Carvalho, Mónica Quintela, Sofia Matos, Catarina Rocha Ferreira. Do contra estiveram o PSD, quatro deputados do PS (João Azevedo, Cristina Sousa, Joaquim Barreto e Sobrinho Teixeira), Chega e PCP. O deputado Jorge Mendes, do PSD, foi a única abstenção.
O início de um novo capítulo
Entretanto, o Parlamento foi dissolvido na sequência da demissão do Governo e o processo paralisou. Esta promulgação do Presidente da República tornou-se apenas em mais um episódio de uma história que ainda não acabou. E promete durar. A lei precisa ainda de ser regulamentada e o que vai acontecer a seguir depende da configuração da Assembleia da República que sair das eleições de 10 de março. Além disso, irá mais uma vez passar pelo Tribunal Constitucional, que foi para onde a esmagadora maioria dos deputados do PSD, 56, enviaram um pedido de fiscalização sucessiva.
Sendo assim, é ainda uma incógnita o que vai acontecer à polémica lei da eutanásia. E os cenários futuros tornam-se ainda mais turvos se tivermos em conta que esta é uma questão fraturante e um Parlamento ou Governo suportados por maiorias simples e frágeis não são favoráveis a que se encontrem os consensos que estes temas exigem. Os efeitos irreversíveis e graves da aplicação de uma lei que determina as condições e pressupostos da morte a pedido ou da definição e compreensão de conceitos, como sofrimento intolerável entre outros, são incompatíveís com a ausência de consensos e insegurança política. E uma maioria simples e frágil, de direita ou de esquerda, é o resultado mais provável das próximas eleições. Caso vença a AD, e existindo uma maioria parlamentar com o Chega, é teoricamente possível que possa ser apresentada uma proposta ou projeto de lei no sentido da revogação desta legislação. E volta tudo a 2015. Caso não se avance neste sentido, resta a regulamentação. A falta de regulamentação constitui uma lacuna que inviabiliza a aplicação da lei e a verdade é que pode não ser do interesse de nenhuma das forças partidárias de maior representação levantar poeira e criar divisões dentro dos partidos. Se assim for, a lei pode ficar em banho maria e à espera de um Parlamento que lhe seja consensualmente favorável.
É exatamente isto que se está a passar com o regime jurídico que permite o acesso à gestação de substituição através da alteração da lei que regula a procriação medicamente assistida. A chamada legislação das ‘barrigas de aluguer’ continua à espera de ser regulamentada, sofrendo agora um novo revés. Esta lei foi publicada em Diário da República a 16 de dezembro de 2021, entrou em vigor em 1 de janeiro de 2022, há cerca de dois anos, e ficou estabelecido que o Governo teria 30 dias para aprovar a respetiva regulamentação. Mas só final do ano passado é que o Governo avançou com a regulamentação da gestação de substituição. O Conselho Nacional de Procriação Medicamente Assistida (PMA) avisou na altura que não tinha recursos para cumprir lei. Até que, no passado dia 13, o Presidente da República anunciou que não promulgava e devolvia ao Governo a regulamentação PMA. “Tendo em conta a importância da eficaz regulamentação de uma matéria que constitui uma preocupação relevante do legislador, de modo a evitar frustrações futuras”, justificou. Para Marcelo Rebelo de Sousa, é fundamental “proceder à audição do Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida (CNECV) e do Conselho Nacional de Procriação Medicamente Assistida (CNPMA)”. Uma vez que “os pareceres emitidos pelas referidas entidades expressam frontal oposição à proposta de diploma em apreço”.
Em janeiro de 2017, depois da aprovação desta legislação no Parlamento e da promulgação pelo PR, um grupo de deputados do PSD e do CDS pediu ao TC a fiscalização sucessiva da lei. Em abril de 2018, foi declarada inconstitucional a norma que não admitia que a gestante pudesse voltar atrás com o acordo estabelecido, até ao momento da entrega da criança. Em julho de 2019, a Assembleia da República voltou a aprovar a alteração mas não incluía a imposição do TC. Marcelo pede então a fiscalização preventiva do diploma, mesmo depois de ter sido aprovado pelo Parlamento. E o TC voltou a chumbar a lei. Só em 2022 é que entrou finalmente em vigor, mas o PR não promulgou a sua regulamentação. A PMA junta-se assim à eutanásia como duas leis fraturantes que só serão aplicadas quando os consensos políticos e jurídicos se encontrarem, as dúvidas foram dissipadas e a vontade do legislador coincidir com a maioria que representa e com o parecer das entidades que irão estar na linha da frente da aplicação das leis.
O que diz a lei
A lei da eutanásia aprovada pela maioria dos deputados, determina que a morte medicamente assistida ocorre por decisão da própria pessoa, maior de idade, de nacionalidade portuguesa ou a residir legalmente em território nacional. É um requisito fundamental que a pessoa deve estar em “situação do sofrimento de grande intensidade, com lesão definitiva de gravidade extrema ou doença grave e incurável”. A morte medicamente assistida só pode ocorrer por umas das seguintes formas: suicídio medicamente assistido, que é a situação em o doente autoadministra fármacos letais sob supervisão médica; ou eutanásia, quando os fármacos letais são administrados por um profissional de saúde habilitado. A morte medicamente assistida só pode ser provocada por eutanásia quando não for possível a concretização do suicídio medicamente assistido por incapacidade física do doente. Nesta versão última da lei não existe o direito de escolha entre suicídio e eutanásia.
Quanto aos conceitos, a lei define sofrimento de grande intensidade como aquele que decorre de doença grave e incurável ou de lesão definitiva de gravidade extrema. E tem de ser de grande intensidade, persistente, continuado ou permanente e considerado intolerável pela própria pessoa. Lesão definitiva de gravidade extrema é uma lesão grave, definitiva e amplamente incapacitante, que coloca a pessoa em situação de dependência de terceiro ou de apoio tecnológico para a realização das atividades elementares da vida diária, existindo certeza ou elevada probabilidade de que essas limitações venham a persistir no tempo sem possibilidade de cura ou de uma melhoria significativa. Já a doença grave e incurável é uma doença que ameaça a vida, está em fase avançada e progressiva, é incurável e irreversível e provoca sofrimento de grande intensidade.
O procedimento passa por um pedido feito por escrito pelo doente e dirigido a um médico, que tem a responsabilidade de coordenar toda a informação e assistência ao doente. O médico emite no prazo de 20 dias úteis um parecer fundamentado e elabora um relatório com toda a informação sobre o estado e situação do doente, quais os tratamentos e o prognóstico. Se o doente mantiver o pedido de morte antecipada, deve registar a sua vontade por escrito. Caso o parecer médico não seja favorável ao pedido do doente, o procedimento é cancelado, mas nada impede que seja novamente iniciado. Se o parecer do médico for favorável, segue-se uma consulta de outro médico especialista na doença, que tem 15 dias para confirmar ou não se a situação está enquadrada nos pressupostos da lei, qual o diagnóstico e se a natureza da doença é de fato grave e incurável. Tudo isto confirmado pelo médico especialista, o doente tem de reafirmar que mantém a vontade. Só é necessário o parecer de especialista em psiquiatria nas situações em que subsistam dúvidas sobre a capacidade do doente para solicitar a morte antecipada e se se detetar a possibilidade de perturbação psíquica ou condição médica que afete a tomada de decisões. Sendo este parecer vinculativo.
Se todos os pareceres forem favoráveis, é enviado o relatório clínico para a Comissão de Verificação e Avaliação dos Procedimentos Clínicos de Morte Medicamente Assistida, a solicitar mais um parecer sobre o cumprimento do procedimento. Caso esta comissão seja favorável, o doente tem de confirmar mais uma vez se mantém o pedido e a vontade. Um pedido que pode ser revogado a qualquer momento.
Depois deste processo, é então definido o método, o local e o dia para executar o procedimento. O médico tem ainda de informar o doente sobre os métodos disponíveis: se a morte é provocada por autoadministração de fármacos letais ou por administração pelo médico quando o doente esteja impossibilitado de o fazer. A lei aprovada não define a quem compete atestar a incapacidade física do doente ou quem assegura a supervisão médica durante o ato. E remete o preenchimento desta lacuna para a regulamentação.
A história inacabada de uma lei
Tudo começou em 1995, com o primeiro parecer do Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida (CNECV) sobre a eutanásia. O relator foi o médico Daniel Serrão, que escreveu: “Não há nenhum argumento ético, social, moral, jurídico ou da deontologia das profissões de saúde que justifique em tese vir a tornar possível por lei a morte intencional do doente (…) ainda que a título de ‘a pedido’ e/ou de ‘compaixão’”. E advertia: “A aceitação da eutanásia pela sociedade civil e pela lei conduziria à quebra de confiança que o doente tem no médico e nas equipas de saúde e poderia levar a uma liberalização incontrolável de ‘licença para matar’ e à barbárie”. Sete anos depois, a Holanda tornar-se-ia o primeiro país europeu a despenalizar a eutanásia e o suicídio assistido.
Quinze anos depois, o tema chega ao debate na praça pública pela insistência do Bloco de Esquerda. E, em 2010, a Associação Portuguesa de Bioética pede ao Parlamento que legislasse sobre o testamento vital. Dois anos depois, PS, BE, PSD e CDS-PP apresentam propostas relacionadas com o testamento vital e um texto conjunto é aprovado dois anos depois.
Em 2015 é, então, fundado o movimento Direito a Morrer com Dignidade, que promoveu um manifesto onde reclamava a urgência em despenalizar a Morte Assistida e, nesse mesmo ano, entregou no Parlamento uma petição com mais de oito mil assinaturas. Nessa petição constavam os nomes de João Semedo, Paula Teixeira da Cruz, Alexandre Quintanilha, Rui Rio e de José Manuel Pureza. Este deputado do BE conseguiu o agendamento de um debate sobre o tema para 2017. E, em janeiro, a Federação Portuguesa Pela Vida respondeu com uma petição contra, argumentando que ao Estado cabe o dever de proteger a vida e “não de criar o direito de alguém ser morto por outrem”. É em maio de 2018 que são votados os primeiros projetos de lei sobre a eutanásia. As iniciativas partiam do PS, do BE, do PEV e do PAN. Nenhum conseguiu os 116 votos necessários, tendo sido o projeto do PS aquele que teve mais votos: 110 votos a favor, 115 contra e quatro abstenções.
Depois das eleições de 6 de outubro de 2019, a eutanásia regressou ao Parlamento. CDS e Chega ainda colocam a hipótese de o tema ser referendado, mas os partidos de esquerda opõem-se. Em fevereiro de 2020, PS, BE, PAN, PEV e IL veem aprovados na generalidade os seus projetos, sendo que, em janeiro de 2021, é elaborado um texto comum aprovado pela maioria dos deputados. Isto apesar de, durante o processo, Passos Coelho e Cavaco Silva se terem pronunciado publicamente contra a eutanásia. Cavaco Silva qualificava esta iniciativa como “a decisão mais grave para o futuro da nossa sociedade que a Assembleia da República pode tomar” e explicava que com aprovação se estaria a “abrir uma porta a abusos na questão da vida ou da morte de consequências assustadoras”. Passos Coelho escreveu um texto no Observador em que afirma que a despenalização da eutanásia “mudaria radicalmente a nossa visão da sociedade” e advertia que “pode representar uma demissão e uma desresponsabilização da sociedade na forma de ajudar os que sofrem”.
A lei foi a aprovada na mesma e seria a primeira de várias tentativas. O primeiro obstáculo foi imposto por Marcelo Rebelo de Sousa, que enviou o diploma para o Tribunal Constitucional, levantando várias dúvidas. O texto é chumbado com vários fundamentos e, entre eles, por “insuficiente densidade normativa” logo no artigo que estabelecia os pressupostos. Em novembro de 2021, quando os deputados concluem uma nova versão para colocarem a votação, já havia data para a dissolução da Assembleia da República. O diploma é aprovado, mas é logo vetado pelo Presidente, que pretende esclarecimentos que considera vitais e básicos. Quer saber se, para haver eutanásia, “é exigível ‘doença fatal’, se só ‘incurável’, se apenas ‘grave’”. O projeto regressa novamente ao Parlamento, onde volta a ser aprovado em novembro de 2022, mas não inclui a obrigatoriedade de “doença fatal” que Marcelo tinha exigido. O Presidente volta a enviar a lei para o TC – estamos em janeiro de 2023 e na terceira versão do diploma.
Os juízes voltam a declarar a lei inconstitucional – sete juízes contra um –, por considerarem que o diploma estava ferido por “intolerável indefinição de sofrimento de grande intensidade”. O texto não explicava se todas as características de sofrimento – físico, psicológico e espiritual – tinham de estar presentes para conter o conceito. Já os conceitos de “doença grave e incurável” e de “lesão definitiva de gravidade extrema” como critérios de acesso à eutanásia não foram considerados problemáticos. De regresso ao Parlamento, os deputados optam por uma simplificação do conceito e estabelecem que o critério é “sofrimento decorrente de doença grave e incurável ou de lesão definitiva de gravidade extrema, com grande intensidade, persistente, continuado ou permanente e considerado intolerável pela própria pessoa”. Sem mais detalhes. E inovam. Pela primeira vez, aparece uma versão em que os conceitos de suicídio medicamente assistido e eutanásia surgem como subsidiários: “a morte medicamente assistida só pode ocorrer por eutanásia quando o suicídio medicamente assistido for impossível por incapacidade física do doente”. A lei é aprovada pela quinta vez no Parlamento e enviada para Marcelo, que veta politicamente. Não resulta. Dias depois, o diploma é confirmado na Assembleia da República e o Presidente é forçado a promulgá-lo. “Eu jurei a Constituição. A Constituição obriga o Presidente a promulgar uma lei que vetou e que foi confirmada pela Assembleia da República (…) é o meu dever constitucional”, justificou.
Se é verdade que Marcelo acabou por se dar como vencido, os deputados do PSD não e enviaram a lei para o TC pedindo a fiscalização sucessiva. Mesmo antes da sua regulamentação, que pode nem sequer chegar. O primeiro argumento que este pedido de fiscalização levanta para a declaração de inconstitucionalidade é “com base no princípio da inviolabilidade da vida humana e na inexistência de um direito fundamental à morte autodeterminada”. Dizem os deputados sociais-democratas que esta regulamentação “provoca uma desvalorização implícita da dignidade dos mais frágeis na sociedade (pessoas doentes, idosas e com deficiência), e uma degradação das funções do sistema de saúde e dos seus profissionais, especialmente quando se institucionaliza uma nova prestação a cargo do Estado e de um novo procedimento administrativo para a satisfazer”. E levantam a questão da rampa deslizante: “a quebra do princípio da inviolabilidade da vida humana abre a porta ao alargamento deslizante das condições e pressupostos em que a Morte Medicamente Assistida poderá ocorrer”. Caso não consigam convencer o TC deste pedido geral de inconstitucionalidade da lei, este grupo de deputados levanta as suas dúvidas sobre 20 normas por “violação da proibição constitucional do défice de proteção da vida humana”.
Quem irá escrever os últimos capítulos desta legislação, as eleições o dirão. Apesar de ser cada vez mais evidente que o consenso quer político, jurídico, científico ou social parece mais difícil de alcançar a cada ano que passa. Sendo cada vez mais uma arma de arremesso político e tema de lutas partidárias. E com isto será sempre uma lei ferida por cedências ou por defesa numa ânsia de existir.