As esquerdas contra… as esquerdas

A crise política é uma lição para Costa, que julgava ter as esquerdas radicais encostadas à parede, desde que ‘trepou’ ao muro em 2015 e se fez primeiro-ministro, ungido pela ‘geringonça’

Por Dinis de Abreu

As coisas são como são. O ‘chumbo’ anunciado do Orçamento de Estado confirmou-se e o que restava da ‘geringonça’ acabou na sucata, com as esquerdas ‘de candeias às avessas’ e o PCP a mimetizar o voto contra do Bloco de Esquerda, inviabilizando qualquer arranjo que poupasse Marcelo Rebelo de Sousa a convocar eleições antecipadas, hipótese que o Presidente cedo apregoou, como ‘castigo’ se os partidos não se entendessem.

Não há volta a dar. As ‘comadres’ desentenderam-se, sacudiram a ‘água no capote’ e alijaram culpas. Reabriu a época da ‘caça ao voto’.

A crise política é uma lição para Costa, que julgava ter as esquerdas radicais encostadas à parede, desde que ‘trepou’ ao muro em 2015 e se fez primeiro ministro, ungido pela ‘geringonça’. E é um precioso ensinamento para o PS, que, sendo minoritário no Parlamento, comportou-se como se tivesse a maioria, repetindo a sobranceria antiga que é a cultura da casa. 

Inesperadamente, as esquerdas compreenderam nas autárquicas que o ‘casamento’ interesseiro já não tinha solução, e que mantê-lo seria atrasar o ‘ajuste de contas’ do divórcio.

O PCP e o Bloco deram, finalmente, ‘a mão à palmatória’, e consideraram-se enganados pelos orçamentos que aprovaram, fingindo que não percebiam as artimanhas de Centeno. O certo, porém, é que essa suposta ingenuidade trouxe aos parceiros vantagens não despiciendas.

Em contrapartida, os eleitores começaram a ficar fartos e a reagirem ao embuste. 

Logo na campanha das autárquicas, Costa abusou das promessas e do truque dos milhões de ‘mão beijada’, durante o périplo exaustivo em que se empenhou por todo o país. Foi a gota de água. 

Depois, a derrota de Fernando Medina em Lisboa e o ‘volte face’ noutros municípios onde o PS se julgava ‘de pedra e cal’, potenciou o revés das esquerdas, que depressa foi visto como um mau presságio.

Por azar, o ‘chumbo’ do OE, apanhou também o PSD e o CDS de ‘calças na mão’, envolvidos em processos eleitorais internos, de desfecho imprevisível. Rui Rio e Francisco Rodrigues dos Santos, embora na ‘corda bamba’, saíram favorecidos.

Assumidamente ‘picado’, Rui Rio decidiu recandidatar-se à liderança do PSD, primeiro num comunicado ‘mal-amanhado’ e, mais tarde, de viva voz, em ato público no Porto, por onde costuma passear a oposição no ‘exílio’.

Depois da saída em falso – e do desaire no Conselho Nacional do partido –, Rio ofereceu ao seu opositor, Paulo Rangel, uma «alegria democrática», por permitir um confronto que dará que falar até ao congresso social-democrata, já com as legislativas em pano de fundo.

A primeira curiosidade está no facto de se apresentarem à liça, agora adversários, dois ‘filhos do Porto’, um mais urbano, europeu e cosmopolita e outro mais rural, com alma regionalista… e caciques por perto.

O mesmo PSD, que, pela mão de Rio, nunca quis maçar António Costa, é hoje palco de um embate interno com fortes probabilidades de dividir o partido. 

Não é inédito e será salutar para a reconfiguração de uma direita adormecida, que serviu de ‘seguro de vida’ para um governo incompetente. 

O PSD precisa de reencontrar-se, depois de andar fugido da oposição. O vazio foi aproveitado pelo frentismo de esquerda que tomou conta do país, espalhando ‘boys’ e ‘girls’ pelo aparelho de Estado. Um poder tentacular que custará remover. 

A ‘venezuelização’ da política portuguesa progrediu a um ritmo imparável, a tal ponto que o primeiro-ministro se permitiu admoestar publicamente, em data recente, empresas cotadas como a Galp, ou reguladores, como a Anacom, além de ter promovido um ‘assalto’ às ordens profissionais.

Se o diploma vingasse, as ordens passariam a ser fiscalizadas por supervisores com mais poderes e sujeitas a ‘provedores do cliente’, uma espécie de ‘controleiros’ residentes. E tudo isto cozinhado pelo PS sem a menor oposição. 

Recorde-se, a propósito, a Carta dos Direitos Digitais, aprovada no Parlamento, cujo famigerado artigo 6.º é uma porta aberta para nova censura – promulgada pelo Presidente da República e, só mais tarde, enviada para o Tribunal Constitucional –, e que ilustra bem essa tendência governamental para vigiar tudo o que mexa.

Com a dívida pública em níveis alarmantes – e apesar da ‘bazuca’ dos dinheiros europeus – a falência do Estado poderá não ser uma hipótese remota nem uma figura de estilo. 

Por isso, a dissolução do Parlamento e a convocação de eleições antecipadas será o mal menor, comparado com o risco de um PS desviado da sua matriz original, sujeito às exigências crescentes do PCP e do Bloco.

Entretanto, num multibanco perto do Palácio de Belém, a seguir ao ‘chumbo’ do Orçamento, Marcelo exibia a sua leveza informal, com os jornalistas ‘à perna’. Outra originalidade. Não disse nada e disse tudo. A derrota do Governo também foi dele.