Posfácio de uma reportagem ou a crença de um independentista

Falamos com um dos responsáveis das mesas eleitorais no dia 1 de outubro para medir o pulso ao movimento e perceber se achava que o esforço tinha valido a pena depois de escutar as declarações no parlamento de Puigdemont.

Conheci Alfred no dia 30 de setembro, quando o ouvi falar num plenário de ativistas pelo referendo que ocupavam a escola Joan Miró. Estava vestido de calções de ganga, ténis de cor berrante e usava uma t-shirt com as palavras “Tropical Vibe”. Nada fazia prever que fosse um dos responsáveis por conseguir que a escola estivesse aberta no dia do referendo, como colégio eleitoral e secção de voto, muito menos me parecia que aquela pessoa fosse um empresário, 45 anos, dono de uma pequena empresa com dez trabalhadores. A permanência na escola durou desde sexta-feira até ao fim de domingo.

 

Um milhar na escola

O dia 1 de outubro, data do referendo independentista, foi muito intenso. Às cinco horas da manhã juntaram-se às 60 pessoas, pais, vizinhos e algumas crianças, que ocupavam a escola mais 500 pessoas do bairro, convocadas pelo apelo da Assembleia Nacional da Catalunha. Às sete horas da manhã, já eram quase um milhar.

 

Guerra na web

Depois de várias manobras, foi pedido às muitas centenas de pessoas que estavam presentes que formassem uma fila. Foi comunicado que, tendo em conta que a justiça espanhola mandara apreender as cartas que sorteavam os eleitores que deveriam estar nas mesas, os primeiros eleitores de cada mesa assumiriam a tarefa. Pedia-se ao presidente de cada uma das secções de voto que tivesse um smartphone para descarregar a aplicação que permitiria aceder ao censo global e dar aos eleitores a possibilidade de votarem em qualquer mesa. Funcionar, já era algo mais difícil. Os peritos da Guarda Civil estavam a conseguir crashar o programa, obrigando as mesas a importarem versões mais potentes e seguras. Em seguida, as autoridades passaram a reduzir o sinal da internet na zona dos locais eleitorais. A situação na Joan Miró e no instituto ao lado só foi normalizada perto das 12 horas.

 

Mobilização e violência

De um pouco por toda a Catalunha chegavam imagens de grande mobilização e violência. As forças policiais destruíram e aprenderam as urnas de cerca de 300 dos quase 3 mil colégios eleitorais previstos para o referendo. Numa escola a 300 metros, mais de 30 polícias nacionais fortemente armados foram parados e impedidos de entrar numa escola que fazia de secção eleitoral por 2 mil pessoas que gritavam: “Somos gente de paz.” A praça da Joan Miró continuou cheia até ao fim da contagem dos votos, quase às 23 horas. As pessoas defendiam com o seu corpo as urnas e os votos. Mais de 2 milhões de catalães participaram votando, contra os cassetetes e a chuva.

 

Não está arrependido

Entretanto, vindo de direta e meia, não fiquei com o contacto de Alfred. Só o consegui há uns dias, pelas mãos de um amigo com família no bairro. Depois da declaração de independência, em modo de suspensão, feita por Carles Puigdemont no parlamento catalão, quis saber qual era o seu estado de espírito, se tanto sacrifício tinha valido a pena. Combinamos uma conversa na quarta-feira à noite, à frente da escola. Alfred não está arrependido. “Era preciso baixar a tensão e dar uma última hipótese para que as coisas se façam a bem”, diz-me enquanto vai petiscando um prato aperitivo tradicional chamado batatas bravas. “O mundo independentista está muito mobilizado, mas é preciso fazer um esforço para o alargar e conseguir que outras pessoas com mais dúvidas possam ser convencidas.” Explica que “é muito diferente declarar a independência com 52% de apoio ou com 75%”.

 

O 8 de outubro

Impressionou-o a manifestação de 8 de outubro dos espanholistas? Diz que até combinou com amigos, que são unionistas, ir lá com um cartaz a dizer para deixarem a Catalunha decidir. “Infelizmente, não consegui ir. No dia seguinte ao referendo ,a minha mãe foi hospitalizada e morreu. Passei uma semana no hospital”, mas argumenta que “foi inegavelmente uma grande manifestação. Vieram de todos os cantos do país. Não vou discutir números, apenas quero dizer que, se eles dizem que tinham lá um milhão de pessoas, então a Diada [dia da Catalunha], que ocupou o triplo do espaço, tinha três milhões, e eram todos daqui, ninguém veio de camioneta e de comboio da Estremadura ou de Madrid”.

 

Mediação europeia?

Não discorda das afirmações recentes da CUP, colocando em causa este recuo. “Eu gosto muito de ouvir a CUP, acho é que, por vezes, nem sempre dizer a verdade é o suficiente. É preciso que essas palavras convençam a maioria das pessoas. Ora nós precisamos de fazer um compasso de espera para mostrar à sociedade catalã, e sobretudo à Europa, que, como diz o presidente, somos gente que só quer a independência de uma forma pacífica e democrática.
É preciso fazer mais um esforço.”

Mas não confia demasiado numa alegada mediação europeia e não teme que, mesmo com a independência declarada pela metade, que o governo Rajoy liquide a autonomia e processe e prenda os membros do governo e os independentistas?

 

Resistência

“Se o fizerem, terão a nossa resistência. Não podem mandar se nós não quisermos. E a Europa vai ter de intervir. Esta situação na Catalunha, se for tentado resolvê-la pela repressão, vai significar uma forte crise económica em Espanha. Esta é a quarta potência económica da UE e a Catalunha é a sua locomotiva. Só se fossem loucos é que deixavam este conflito ser resolvido à força. Nós só pedimos o direito de votar. Como fizeram os escoceses”, lembra.

Não é independentista desde sempre. “Eu era votante da Convergência e União, um típico catalão conservador. Só a partir de 2010 é que me tornei independentista. O chumbo do Estatuto Catalão e a forma humilhante como aquele pequeno grupo de homens, do Tribunal Constitucional, nomeados por partidos espanholistas, chumbou um Estatuto aprovado por mais de 88% dos parlamentares catalães, e aprovado no parlamento espanhol e referendado cá, segundo as regras da Constituição deles, fez-me ver que já não era possível aceitar as regras que eles nos impõem. Foi a partir daí que me tornei independentista.”

Não teme que a fuga das empresas da Catalunha, a ameaça de não aceitação da nova República Catalã na UE, tornem tudo economicamente impossível? “Eu, a primeira reação que tive quando o Sabadell declarou sair com a sua sede social daqui, foi retirar o bastante dinheiro que lá tenho, mas depois pensei melhor, e fui falando com gente nas redes sociais, e percebi que grande parte da nossa economia e as nossas empresas negoceiam com Espanha. Ao saírem com as sedes sociais daqui, eles não se vão embora daqui, apenas garantem a manutenção desses negócios e mercados antes que seja feita uma qualquer declaração de independência. O importante é que as atividades económicas e produtivas continuem a ser feitas cá, e os salários pagos cá.”

 

“Não temos de sair do euro”

E a saída da UE e do euro não o assusta? “Não temos de sair do euro. Andorra não é da UE e usa o euro como moeda. É preciso ser pragmático. A UE não quererá ficar sem uma região tão produtiva como a Catalunha.”

 

Ganhar mais gente

Não sabe se haverá negociações com o governo espanhol, mas acha que tem de ser usado esse tempo a convencer mais pessoas. Como? “Como o fazemos, falando com elas. Usar todo este tempo para ganhar mais gente. Até mesmo mostrando a forma violenta e irracional como o governo de Mariano Rajoy está a reagir. Nós temos muita força. Para lhe dar um exemplo, a minha empresa trabalha num mercado com 500 outras empresas. No dia da greve geral, toda a gente fechou. Nunca ninguém tinha visto uma coisa assim.”

E o que pensam e fizeram os seus dez trabalhadores? “O que tem mais responsabilidades é independentista, o que está abaixo desse não tem uma posição definida. O resto são trabalhadores marroquinos, não querem envolver-se nesta questão. apenas que se lhes garanta que têm trabalho e são pagos”, afirma Alfred, que continua a achar que daqui a um mês haverá um novo sujeito político na península Ibérica: a República da Catalunha.